A NARRATIVA TELÚRICA
EM ESCRITORES MÉDICOS TRANSMONTANOS
A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA E BENTO DA CRUZ
II
Ao
falar na narrativa telúrica em escritores médicos transmontanos, começarei por Miguel
Torga. Imagino que seria assim que ele gostava de se ver.
Torga
nasceu em S. Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa em 1907, numa família
humilde. Aos 10 anos, foi trabalhar para casa de familiares ricos, no Porto, e
não se deu bem. Foi despedido por rebeldia e, em 1918, entrou para o seminário
de Lamego, onde passou apenas um ano. Recusou fazer-se padre. Poderá ter
perdido a fé.
Com
13 anos, foi enviado para o Brasil, para junto do tio, que possuía uma fazenda
de café em Minas Gerais. O tio deu conta das qualidades invulgares da criança e,
quatro ou cinco anos depois, matriculou-o no Ginásio, em Leopoldina. O
ginásio equivale mais ou menos ao nosso liceu. O moço distinguiu-se nos estudos
e o tio entusiasmou-se com ele, a ponto de lhe pagar o resto do estudo liceal e
o curso de Medicina.
Em
1928 Adolfo Coelho da Rocha, entrou para a Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Ansiedade.
Em
1929, aos vinte e dois anos, deu início à colaboração com a revista Presença,
com o poema Altitudes. A “Presença”, fundada em 1927 por José Régio, Gaspar
Simões e Branquinho da Fonseca foi publicada até 1940. Centrou o movimento
literário chamado “segundo modernismo” ou “presencismo”, que se haveria de
revelar mais crítico do que criador. A revista ajudou a celebrar o primeiro
modernismo e a divulgar as suas figuras de proa: Fernando Pessoa, Mário
Sá-Carneiro e Almada Negreiros.
Torga
abandonou o grupo no ano seguinte, por «razões de discordância estética e
razões de liberdade humana».
Casou,
em 1940, com uma belga nascida em França, Andrée Crabbé, que tinha vindo a
Coimbra para fazer um curso de verão com Vitorino Nemésio.
Aqui
está Miguel Torga, à esquerda. Vitorino Nemésio é o senhor da direita e tem a
seu lado Paulo Quintela. Avesso a correntes literárias, Torga foi sempre um
individualista, um poeta solitário, para quem a independência e a liberdade de
criar eram valores fundamentais. O chamado da terra, o apego às origens e a
necessidade de revisitar o chão onde nascera, para se revitalizar, estão
presentes em boa parte da sua obra.
Torga
publicou mais de 50 livros. Para ilustrar o meu tema, da sua vasta obra poderia
ter escolhido contos, versos, ou um dos seus poucos romances. Optei pelos
diários, essencialmente porque cobrem um período vasto da sua vida, e permitem
acompanhar a evolução do escritor ao longo do tempo.
Saíram 16 volumes do Diário, entre 1932 e 1993. São mais de sessenta anos. O escritor morreu
em Coimbra, em janeiro de 1995. Está sepultado em S. Martinho de Anta.
Escrutinei
os volumes I, X e XIV dos diários, que me pareceram constituir uma amostragem
razoável. A terra natal aparece logo nas primeiras páginas do volume inicial
com um chamado forte e quase irresistível.
SMA,
5 de março de 1934
Como
a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende – é esta. A comida que o
meu estômago deseja – é esta. O chão que os meus pés sabem pisar - é este. E,
contudo, eu não sou já daqui.
Pareço
uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que
morrem se voltam à terra natal!
Ao
partir, primeiro para o Porto e depois para o Brasil, de onde seguiria para
Coimbra, Adolfo Coelho da Rocha ficou com o coração quebrado. Julgo que essa
racha a meio da personalidade o acompanhou até aos dias finais.
SMA,
20 de abril de 1938
Tirei
hoje o leite à cabra. Mas a minha mão já não é a mão justa do lavrador que
conhece a medida da sua fome. Tirei tudo. Sequei tudo. Deixei o cabrito sem
ração. Meu Pai olhou-me desanimado, e a cabra também.
Torga
não se demorou no Brasil tempo que bastasse para o amar. Em Coimbra, onde decorreu
a maior parte da sua vida de escritor e de médico, sentiu-se sempre um pouco
inadaptado, com se nunca tivesse deixado de ser um estranho.
Saltemos
agora 27 anos. Mal se dá pela passagem do tempo na escrita de Torga.
SMA,
12 de abril de 1965
Leio
o nome da povoação nos marcos da estrada. Vejo logo a Senhora da Azinheira a
branquejar no alto da serra, oiço o sino a badalar, sabe-me a boca a tabafeira,
cheira-me a rosmaninho.
Tabafeira, ou tabafeia, é uma alheira.
Já
dentro da terra, tropeço em cada pedra, bebo em cada fonte, vou de anjo em
procissão. Enquanto ando lá por baixo, esqueço-me de que tenho cá dentro um tal
rosário de reações à espera de estímulo. Prova evidente de que os ramos e as
folhas estão longe das raízes.
Tudo
o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a
este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No
outro, oiço-lhe a música; neste, sinto-lhe as vibrações.
29 SMA, 16 de agosto de 1966
S.
Martinho é um reduto ideal. Uma fortaleza a que me abrigo duas ou três vezes
por ano, e onde me sinto inexpugnável todos os dias.
SMA,
16 de abril de 1967
Seja
qual for a estação do ano e a direção seguida, antes de sair de casa já sei que
alimento os olhos vão ter pelo caminho. Neve no Larouco, rododendros cor de
fogo em Magueija, soutos a pingar castanhas em Carrazedo de Montenegro. Mas é
sempre com o mesmo alvoroço que parto, e com o mesmo deslumbramento que
regresso. Para o verdadeiro crente, a missa nunca se repete. E a minha missa é
esta. Uma íntima e diária comunicação com a natureza, nos transes da sua
perpétua agonia, morte e ressurreição.
Sarraquinhos,
Barroso, 17 de setembro de 1967
Atrai-me
esta amplidão pagã, sinto-me bem a pisar um chão em que o deus vivo de ricos e
pobres, de alfabetos e analfabetos, é o toiro do povo.
Um
deus de cornos e testículos que, depois de cada chega e de cada vitória, a
gratidão dos fiéis cobre de palmas, de flores, de cordões de oiro e de ternura.
Um
deus a quem se dão gemadas e cervejas para que possa inundar as vacas de sémen,
as moças de esperança, os moços de certeza e a senilidade de gratas
recordações.
Um
deus eternamente viril, num paraíso sem pecado original.
SMA,
23 de dezembro de 1982
Lá
em baixo sou uma ficção entre ficções; aqui sou uma criatura entre criaturas.
Após
a morte da irmã, ocorrida em abril de 1983, as visitas a S. Martinho de Anta
tornam-se mais espaçadas.
SMA,
19 de setembro de 1984
Estou
que não posso. Pareço quebrado dos rins. A suar em bica, esfalfado, não dou
tréguas ao corpo enquanto não vejo a terra limpa como a herdei dos
antepassados. Pedem muito as raízes! Aqui, debaixo do seu império, pouco ou
nada se me dá de ser bom ou mau escritor. Sinto-me, sim na obrigação de ser um
bom cavador.
(Continua)
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