DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 15 de outubro de 2017



A EXECUÇÃO DE ALDO MORO



Poderão existir anjos na terra, mas não acedem ao Poder. Se lá chegassem (por milagre) seriam incapazes de o exercer. Depressa veriam as asas queimadas.
Aldo Moro foi assassinado em maio de 1978, após um cativeiro que durou quase dois meses. Não se tratava de um cidadão qualquer. Tinha sido, durante perto de uma década, o personagem mais destacado em Itália, depois do Papa. Chefiou cinco governos. Politicamente, conservou-se sempre próximo da Igreja Católica.
A 16 de março de 1978, na Via Fani, em Roma, um grupo de militantes da organização italiana de extrema-esquerda «Brigadas Vermelhas», comandado por Mario Moretti, intercetou os dois carros da comitiva de Moro, liquidou os cinco guarda-costas que deveriam protegê-lo e raptou-o. Por essa altura, todos os membros fundadores das Brigadas Vermelhas tinham sido detidos. Os brigadistas queriam demonstrar que estavam vivos e ativos e que nem as mais altas figuras da República Italiana estavam a salvo dos seus ataques. Retomavam, desta forma, o protagonismo nos noticiários internacionais.


Aldo Moro era o líder da Democracia Cristã italiana e Giulio Andreotti um dos seus dirigentes mais destacados. Moro foi sequestrado quando se dirigia para a Câmara dos Deputados, para assistir à tomada de posse de Andreotti como primeiro-ministro.
O governo italiano recusou negociar com os sequestradores e Aldo Moro foi assassinado, após um longo cativeiro.
Muito se disse e pouco se provou sobre o envolvimento de diversas personagens e organizações italianas, americanas e, até, soviéticas, no caso Moro. O historiador Sergio Flamigni afirma que Moretti foi colocado pela Gladio à frente das Brigadas Vermelhas.
 Entre 1969 e a segunda metade da década de 80, a Itália viveu os chamados «anos de chumbo». A «guerra fria» estava no auge. Os eurocomunistas de Enrico Berlinguer eram o partido comunista mais importante do mundo capitalista. O PCI ocupava 34% das cadeiras parlamentares, sendo apenas suplantado pela Democracia Cristã.

                            Enrico Berlinger
 Aldo Moro era um político pragmático. Menorizou porém alguns dos aspetos mais radicais da política italiana e mundial. O seu «compromisso histórico» iria juntar a Direita e a Esquerda, assegurando uma base parlamentar sólida a um governo inédito de democratas-cristãos e comunistas. A iniciativa desagradava a muita gente, dentro e fora do país. Nessa altura, a “geringonça” estava por inventar. 
 Para os americanos, a entrada de comunistas no governo de Itália iria permitir-lhes não só influenciar decisões políticas que poderiam contrariar os seus interesses, como também aceder a informações estratégicas sobre instalações e planos militares, podendo eventualmente comunicá-las a agentes soviéticos. Em caso extremo, a NATO poderia mesmo deixar de ter acesso a portos estratégicos no Mediterrâneo.
A União Soviética receava ver abalar o equilíbrio tático estabelecido na Europa, no final da guerra. A embaixada soviética em Roma terá manifestado a Aldo Moro a sua discordância quanto ao «compromisso histórico». Aliás, as relações dos russos com o PCI de Berlinger não eram as melhores.
No plano interno, o projeto de Moro levantou objeções à esquerda e à direita. À direita, dentro da própria Democracia Cristã, a ideia tinha adversários de peso. À esquerda, havia quem falasse de traição à causa socialista. Os extremistas dos dois campos opunham-se à paz social.
As Brigadas Vermelhas assumiram publicamente a autoria do rapto e do assassinato de Moro. A motivação e as associações conjunturais do grupo esquerdista é que são menos claras.
Há quem diga que a Gladio, braço secreto da NATO, instrumentalizou os membros das Brigadas com a finalidade de agudizar o ódio aos comunistas na sociedade italiana. Era importante inviabilizar o controlo de alguns ministérios pelo PCI e recorreu-se à «estratégia de tensão». Tratava-se de diabolizar a Esquerda, para que a opinião pública exigisse do Estado o reforço das medidas de segurança. Não se trataria de um acontecimento isolado: de acordo com um suposto antigo agente da Gladio, Vincenzo Vinciguerra, o atentado bombista que vitimou 85 pessoas, em 1980, num comboio de Bolonha, foi preparado e executado por agentes dos serviços secretos italiano e americano.
Os meandros da política italiana eram complexos, envolvendo múltiplos protagonistas. A Máfia enriquecera no pós-guerra com o boom das obras públicas e pagava a individualidades políticas bem colocadas para ser favorecida nos concursos abertos pelo governo e pelas autarquias. Certas lojas maçónicas tinham feito profissão de fé anticomunista. Alguns dos seus dirigentes colaboravam abertamente com a direita italiana, não se coibindo de confraternizar com a CIA e com a Gladio. Lembro que o gládio romano era uma espada de dois gumes. Por coincidência ou não, faz parte do logótipo da NATO.
O antigo membro das Brigadas Vermelhas Alberto Franceschini publicou um livro em que apontou Aldo Moro como um dos fundadores da Gladio. A ser assim, ganharia força o ditado: «quem com ferros mata…»
Na extrema-esquerda do leque político italiano havia quem ainda sonhasse impor o comunismo no país através da ação revolucionária. 


O certo é que o assassinato de Moro pôs fim ao «compromisso histórico». A decisão de deixar morrer Aldo Moro poderá ter sido tomada em conjunto pela CIA e pela direita política italiana. Terá sido precipitada quando Moro começou, nas suas cartas, a revelar segredos de estado, incluindo a existência da Gladio.
A dada altura, o destino de Moro ficou traçado. O governo italiano negou-se a fazer um acordo com bandidos. O ministro do interior, Francesco Cossiga, adotou uma posição intransigente e recusou qualquer negociação com os sequestradores, que se declaravam dispostos a trocar o antigo primeiro-ministro por um grupo de militantes esquerdistas presos.
A prisão de Aldo Moro e a ameaça de morte que sobre ele pendia ocuparam boa parte dos noticiários televisivos em Itália e um pouco em todo o mundo e encheram os cabeçalhos dos jornais. O antigo primeiro-ministro esteve cativo durante 55 dias. Escreveu quase duas cartas diárias. Endereçou-as à família, ao governo e até ao Papa. O conteúdo de algumas foi silenciado durante décadas. Moro esmolou negociações e piedade, mas não as obteve. Frustradas as tentativas de compromisso, as Brigadas assassinaram o líder democrata-cristão. O corpo de Aldo Moro, crivado de balas, foi abandonado no interior dum automóvel junto ao rio Tibre, no dia 9 de maio de 1978.


Cossiga, mais tarde presidente da República italiana, viria a declarar que, se tivesse admitido negociar com as Brigadas Vermelhas, faria o país mergulhar numa crise profunda e duradoura. O Estado italiano poderia mesmo desagregar-se. Admitiu que o gabinete de crise a que presidia tinha feito passar a notícia falsa da execução de Moro, um dia antes dela ocorrer. A desinformação fora emitida para testar a reação da opinião pública e para colocar um ponto final nas hipóteses de negociação. O anúncio equivaleu a uma sentença de morte. Para o governo italiano, Moro era já um cadáver. 
      Steve Pieczenik, enviado do presidente Jimmy Carter ao gabinete de crise italiano, admitiu 28 anos mais tarde, numa entrevista pública, que tinham sacrificado Aldo Moro para manter a estabilidade em Itália.
Com Moro afastado da cena política, Giulio Andreotti assumiu o cargo de primeiro-ministro e pôs em prática uma política declaradamente anticomunista.

                             Giulio Andreotti
Infiltradas ou não, ao matarem Aldo Moro após quase dois meses de cativeiro, as Brigadas Vermelhas suicidaram-se politicamente. Poucos italianos as apoiariam, depois da publicação repetida de cartas a pedir a misericórdia de negociações, escritas por um homem respeitado em toda a Itália pela sua estatura moral e intelectual. Moro quis pacificar o seu país, congregando os setores moderados da Esquerda e da Direita num acordo parlamentar que asseguraria ao governo o apoio de uma maioria estável. Em vez disso, desencadeou um maremoto que o engoliu a ele e ao seu projeto.
Custa entender como foi tão fácil a um grupo, bem armado mas sem experiência de combate, atacar os dois automóveis, matar os guarda-costas com rajadas de metralhadora e retirar sem oposição, transportando a vítima para um refúgio previamente preparado. Os carros não eram à prova de bala. De outro modo, teria havido uma resistência eficaz.
Os sequestradores acabaram por ser presos. Os carabinieri do general Dalla Chiesa desmantelaram o agrupamento revolucionário italiano. Em janeiro de 1983, 25 elementos das Brigadas Vermelhas foram condenados a prisão perpétua pelo assassinato de Aldo Moro e dos seus guarda-costas.
À execução de Moro, seguiram-se outras mortes violentas, alegadamente associadas à sua. No próprio mês da execução, o jornalista italiano Mino Pecorelli publicou um artigo explosivo. Sugeria a conexão entre o caso Moro e a Gladio. Apontava o dedo acusador à CIA e afirmava que o comandante dos carabinieri Carlo Alberto Dalla Chiesa, tinha informado o ministro do Interior Francesco Cossiga do local do cativeiro de Moro, ainda em vida do sequestrado. O general teria recebido ordens para não atuar, devido à oposição de uma loja maçónica poderosa. Pecorelli profetizou então o assassinato de Dalla Chiesa.

                            Dalla Chiesa
Tanto Chiesa como Pecorelli eram maçons. O nome de Mino Pecorelli constava da lista de membros da loja P2 de Lício Gelli.
Carlo Alberto Dalla Chiesa foi transferido para Palermo. Muitos italianos acreditam que foi enviado para a Sicília por saber demais sobre as circunstâncias que rodearam o cativeiro e a morte de Aldo Moro. O general e a sua esposa foram abatidos a tiro pela Máfia, quatro anos mais tarde.


Pecorelli viveu menos tempo. Foi assassinado por dois desconhecidos, em março de 1979. Acabara de anunciar a intenção de publicar novos factos que comprometiam Giulio Andreotti. Andreotti foi acusado de ter ordenado a morte do jornalista. Tinha sido por diversas vezes primeiro-ministro de Itália e estava estreitamente ligado à Máfia. Curiosamente, foi ele quem primeiro reconheceu publicamente a existência da Gladio. Estava-se já em outubro de 1990.   



   O processo judicial parece confuso para os não italianos. Em 1999, decorridas duas décadas sobre o crime, o tribunal absolveu-o, no final dum julgamento que durou três anos. Houve recurso e, em novembro de 2001, Andreotti, já octogenário, foi condenado a 24 anos de prisão. Não chegou a ser encarcerado porque a sua condição de senador vitalício lhe conferia imunidade. Em outubro do ano seguinte, um tribunal superior anulou a decisão prévia e absolveu Giulio da acusação de homicídio. Em 2003, o tribunal de Palermo absolveu-o também da acusação de ligação à Máfia por ter prescrito o prazo dos supostos delitos. 

(Capítulo do livro por publicar, de António Trabulo, Estanho Ofício de Matar).
          


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