OS
FADOS DA MINHA VIDA
O meu percurso foi pouco influenciado por canções e
menos pelos fados. Fados da minha vida foram aqueles que escutei repetidas
vezes com agrado. Ao lembrá-los, confundo-os com as pessoas que os cantaram.
Eram todos intérpretes de uma só canção.
O Manuel da Justina cantava “ O Embuçado”, a bordo do
Gil Eannes. Era da Nazaré e trabalhou comigo durante duas campanhas. Eu era
médico e ele auxiliar da enfermaria. No verão de 1970 aportámos a North Sidney,
na costa canadiana e organizámos uma partida de futebol. Eu estava,
inocentemente, à espera de que o meu estatuto de médico continuasse a ser
respeitado em campo. Enganei-me. No calor do jogo, na primeira jogada em que
nos defrontámos, meio sem querer, o Manuel deu-me uma vigorosa estalada na
cara. Fiquei a perceber o espírito da partida. Eu vinha, cheio de força, do
curso de oficiais milicianos. Mais ninguém passou pela minha ala, na direita da
defesa. A bola ia, mas o adversário ficava. Felizmente, o árbitro era
permissivo. Talvez nem tivesse no bolso os cartões coloridos.
A Helena Nazaré – o nome denuncia a origem na terra
do Manuel – era uma enfermeira instrumentista de mão cheia, daquelas que muito
antes da generalização das licenciaturas em enfermagem contribuíram para elevar
o prestígio do nosso Serviço Nacional de Saúde. Cantava a “Maria Madalena”.
Nunca me fartei de a ouvir.
O meu cunhado Vasco, no fim dos jantares de família
fazia-se rogado mas lá acedia a cantar o “Santas no fado”. O Vasco nunca foi um
homem igual aos outros. No verão de 1975 aterrou em Lisboa com o casaco
atafulhado de notas do Banco de Angola. O dinheiro não era dele e não lhe
aqueceu as mãos. Esperou que o escritório da representação do Caminho de Ferro
de Benguela abrisse, para prestar contas. As coisas, em Angola, estavam quentes
e um dos Movimentos pretendera confiscar o dinheiro que ele devia entregar,
como pagador, aos empregados da Companhia, em cada estação. Escapou-se como
pode para dar o seu ao seu dono. Uma semana depois, voltou para Angola.
O Vasco continua esperto e a cantar bem, embora diga
que já não tem voz. Como “O Embuçado “ e o
“Maria Madalena” são bem conhecidos, deixo aqui a letra do “Santas no
Fado”. Registo-a de memória e peço desculpa por qualquer inexactidão. Quem
quiser saber a música, que vá procurá-la à S. P. A. Devem ter lá o registo. A
letra é mais ou menos assim:
Santas no fado, dizia
Mentirolas, fantasia,
Roupa suja que se arruma.
Pode haver mexeriqueiras,
Intriguistas, regateiras,
Mas santas não há nenhuma.
O fado segue a carreira
Da mais alta majestade
Sem santinhos nem sacristas
Ou então, doutra maneira,
Vou fundar a irmandade
Da Senhora dos Fadistas.
Não podemos concordar
Com tais coisas no fadinho.
Portanto, doa a quem doa,
Nem a guitarra é altar
E o povo, por ser anjinho,
Tem asas, mas nunca voa.
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