MOTA YEKENHA
UM ESCRITOR ANGOLANO DESAPARECIDO
UM ESCRITOR ANGOLANO DESAPARECIDO
Não são ainda muitos os escritores negros dos países lusófonos. Vou
falar de um que sumiu e não voltou a dar sinais de vida.
Publiquei o meu primeiro livro na Europress, em 2002. O proprietário
da empresa, Bento Vintém, ofereceu-me um exemplar de um romance chamado
Kambonha que editara dez anos antes.
O autor não chegou a ver o seu
livro nas montras das livrarias. Terá desaparecido no conflito armado que
incendiou Angola em 1993.
Mota Yekenha nasceu em 1962 no Huambo e aí viveu a infância e a
juventude. Frequentou a escola da missão católica local e mais tarde cursou
filosofia e teologia no Seminário Maior do Huambo. Julgo que se fez padre.
A escrita não é perfeita – trata-se de uma primeira obra −
mas o talento do narrador é inegável.
O romance desenrola-se em Luanda,
nos anos que se seguiram à independência. Mota Yekenha descreve, com graça e conhecimento, os imaginosos esquemas utilizados pelos luandenses para sobreviver. O livro está repleto de críticas
duras aos dirigentes angolanos e ao M.P.L.A. O autor troca os nomes todos. Não
procurará proteger-se, pois são fáceis de identificar. Angola é Kambongo, Luanda
é Dikungu, José Eduardo dos Santos é Oman-Kabamba Ndambi e Jonas Sabimbi é Nikila-Ya-Luimbi.
O MPLA é o PAIK e a UERC é a URSS.
Lida hoje, a dedicatória parece uma
premonição :
Ao José Maria Cigarro; disse a verdade e
desapareceu
Ao R.C.W.; foi de boa fé até ao fim,
Ao Prata, Irmão Sofredor; inspirou muito.
Deixo aqui umas linhas da prosa de Mota Yekenha.
Quando a minha mãe, Kandundu, veio para aqui viver com o seu Kanjembe,
moravam no rabo de um velho caça-bombardeiro, nas imediações do Bairro Militar.
A minha mãe trazia consigo, à volta da bunda e nos seios, algumas notas.
Poucas! O grosso vinha na mochila do marido. Chegados cá, após duas semanas de
buracos abertos pelo tempo e pelas lagartas da guerra nas estradas, saltos
incríveis, njilenjile (enjoo) por
cima de um velho camião , emboscadas, horas de cerco e fogo e mais outras
peripécias, tiveram sérias complicações para fixar residência cá, em Dikungu.
Logo no controlo da entrada da cidade, foram envolvidos em sérias dificuldades.
Os cuembas e cahingas deram com o maço de notas na mochila. Nessa altura, dizem
que a vistoria era uma mania geral, mais aguda do que hoje. De dez em dez
metros, na cidade, em cada vinte quilómetros, nas estradas, nos aeroportos,
portos, estádios desportivos, salões de espetáculos, em casa, nas escolas,
fábricas, parques infantis, chafarizes, lojas, escritórios, havia sempre alguém
a pedir documentos pessoais, a dizer “guia de marcha”, “situação militar
regularizada”, “cartão de residência”, “talões das quotas para as organizações
partidárias”, “fatura…”, “guia de circulação”, “caderneta de cheques”, etc. E
os gajos complicavam até duvidar do Bilhete de Identidade das pessoas,
apoderavam-se, às vezes, de artigos alheios, dinheiro, rasgavam documentos
dificílimos de serem novamente tratados e detinham cambas (camaradas) muito
arbitrariamente. Num percurso de duzentos quilómetros, pelas vias terrestres
cheias de crateras, as guias caducavam, sujavam-se, rasgavam-se!
Outro pequeno texto:
O kambonguês sentia orgulho nacional por dormir sobre o subsolo mais
rico do mundo, pisar com os pés descalços pérolas e lençóis de petróleo, fazer
de lenha a madeira mais cara do continente.
Os africanos gostam de
provérbios. Na segunda página do livro, Mota Yekenha regista um provérbio
angolano e a sua tradução para português.
“Kingungu-a-njila nagamudile ni kukwtu;
Kukwetu wadifila, eme nagadikumbulika;
Eye wixi Kingungu-a-njila xitu yambote?!”
−
Peru bravo comi eu e meu avô;
Meu avô foi levado à morte, eu à mutilação:
Ainda me dizes tratar-se de boa carne?!”
Trata-se de um excelente primeiro livro. Não houve segundo. Mota Yekenha desapareceu. Perdeu a literatura angolana e perdemos nós.
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