DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011


MOTA YEKENHA 
UM ESCRITOR ANGOLANO DESAPARECIDO


Não são ainda muitos os escritores negros dos países lusófonos. Vou falar de um que sumiu e não voltou a dar sinais de vida.
Publiquei o meu primeiro livro na Europress, em 2002. O proprietário da empresa, Bento Vintém, ofereceu-me um exemplar de um romance chamado Kambonha que editara dez anos antes.
O autor não chegou a ver o seu livro nas montras das livrarias. Terá desaparecido no conflito armado que incendiou Angola em 1993.
Mota Yekenha nasceu em 1962 no Huambo e aí viveu a infância e a juventude. Frequentou a escola da missão católica local e mais tarde cursou filosofia e teologia no Seminário Maior do Huambo. Julgo que se fez padre.
A escrita não é perfeita – trata-se de uma primeira obra − mas o talento do narrador é inegável. 
O romance desenrola-se em Luanda, nos anos que se seguiram à independência. Mota Yekenha descreve, com graça e conhecimento, os imaginosos esquemas utilizados pelos luandenses para sobreviver. O livro está repleto de críticas duras aos dirigentes angolanos e ao M.P.L.A. O autor troca os nomes todos. Não procurará proteger-se, pois são fáceis de identificar. Angola é Kambongo, Luanda é Dikungu, José Eduardo dos Santos é Oman-Kabamba Ndambi e Jonas Sabimbi é Nikila-Ya-Luimbi. O MPLA é o PAIK  e a UERC é a URSS.
Lida hoje, a dedicatória parece uma premonição :

Ao José Maria Cigarro; disse a verdade e desapareceu
Ao R.C.W.; foi de boa fé até ao fim,
Ao Prata, Irmão Sofredor; inspirou muito.


Deixo aqui umas linhas da prosa de Mota Yekenha. 

Quando a minha mãe, Kandundu, veio para aqui viver com o seu Kanjembe, moravam no rabo de um velho caça-bombardeiro, nas imediações do Bairro Militar. A minha mãe trazia consigo, à volta da bunda e nos seios, algumas notas. Poucas! O grosso vinha na mochila do marido. Chegados cá, após duas semanas de buracos abertos pelo tempo e pelas lagartas da guerra nas estradas, saltos incríveis, njilenjile (enjoo) por cima de um velho camião , emboscadas, horas de cerco e fogo e mais outras peripécias, tiveram sérias complicações para fixar residência cá, em Dikungu. Logo no controlo da entrada da cidade, foram envolvidos em sérias dificuldades. Os cuembas e cahingas deram com o maço de notas na mochila. Nessa altura, dizem que a vistoria era uma mania geral, mais aguda do que hoje. De dez em dez metros, na cidade, em cada vinte quilómetros, nas estradas, nos aeroportos, portos, estádios desportivos, salões de espetáculos, em casa, nas escolas, fábricas, parques infantis, chafarizes, lojas, escritórios, havia sempre alguém a pedir documentos pessoais, a dizer “guia de marcha”, “situação militar regularizada”, “cartão de residência”, “talões das quotas para as organizações partidárias”, “fatura…”, “guia de circulação”, “caderneta de cheques”, etc. E os gajos complicavam até duvidar do Bilhete de Identidade das pessoas, apoderavam-se, às vezes, de artigos alheios, dinheiro, rasgavam documentos dificílimos de serem novamente tratados e detinham cambas (camaradas) muito arbitrariamente. Num percurso de duzentos quilómetros, pelas vias terrestres cheias de crateras, as guias caducavam, sujavam-se, rasgavam-se!

Outro pequeno texto:

O kambonguês sentia orgulho nacional por dormir sobre o subsolo mais rico do mundo, pisar com os pés descalços pérolas e lençóis de petróleo, fazer de lenha a madeira mais cara do continente.

Os africanos gostam de provérbios. Na segunda página do livro, Mota Yekenha regista um provérbio angolano e a sua tradução para português.

“Kingungu-a-njila nagamudile ni kukwtu;
Kukwetu wadifila, eme nagadikumbulika;
Eye wixi Kingungu-a-njila xitu yambote?!”

− Peru bravo comi eu e meu avô;
Meu avô foi levado à morte, eu à mutilação:
Ainda me dizes tratar-se de boa carne?!”

Trata-se de um excelente primeiro livro. Não houve segundo. Mota Yekenha desapareceu. Perdeu a literatura angolana e perdemos nós.

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