Tem-se falado, neste blogue, de Agostinho da Silva, um pensador singular da nossa terra. Hoje, vou lembrar outro Agostinho, dotado de um talento diferente.
Agostinho Morais Fortes era um cabo-verdiano escuro. Nasceu em Santa Maria, na Ilha do Sal, numa família com certo prestígio. Finda a instrução primária, foi estudar para o Mindelo.
Apesar do seu interesse crescente pela música, revelou-se um aluno suficientemente aplicado para terminar o curso do Liceu sem perder anos. Durante os tempos do Mindelo, deu nas vistas pela sua habilidade para o desporto, mas foi ali que conheceu músicos e se fez músico. Numa expressão feliz, Elsa Rodrigues dos Santos apelida de "dionísica" a cultura de Cabo Verde, que exalta a alegria, a música, o vinho e o amor. Agostinho Fortes iria percorrer a vida acompanhado pelo violão.
Trabalhou no Sal, durante alguns anos, como desenhador. Ingressou depois no Serviço Meteorológico. Integrou o "Conjunto de Cabo Verde", que incluía outros músicos notáveis e que gravou diversos discos de grande circulação em Portugal.
A dada altura, resolveu prosseguir os estudos. Para tal terá contribuído o exemplo do seu irmão Albertino, que estava a terminar o Curso de Medicina. Como o Serviço Meteorológico estava ligado ao Instituto Geofísico da Universidade de Coimbra, mudou-se do Sal para a cidade do Mondego.
Ali, segundo a esposa, dividiu o tempo entre o trabalho, o estudo e a música. Do estudo, nunca dei conta. No trabalho, acompanhei-o algumas noites, quando interrompia as farras para cumprir meticulosamente os horários de recolha dos dados meteorológicos no Instituto Geofísico. Tive o privilégio de o ouvir, repetidamente, tocar e cantar. Dizia, quem sabia mais de música do que eu, que, na mestria da viola, apenas era ultrapassado, em Cabo Verde, pelo lendário B. Leza. Zeca Afonso gabava-lhe a destreza da mão esquerda. Embora não fosse cantor, o Agostinho tinha uma voz doce e expressiva, de quem é capaz de sonhar e de fazer sonhar. Decorreram três dezenas de anos e ainda guardo no ouvido a suavidade das suas interpretações de algumas mornas e do brasileiro "Sereno da Madrugada".
O talento invulgar para a música e o decorrente jeito para encantar senhoras obstaram a que se dedicasse mais aos livros. Casou com a doce Bernardette, de quem teve o Júlio e o Cândido. Tivera antes filhos de outras mulheres.
A Bernardette era amiga do peito da minha São. Foi assim que nos aproximámos.
Agostinho Fortes era um homem vertical, gentil, firme e estabilizador. Quantas vezes deitou água nas fervuras que se iam levantando nas noites de Coimbra?
Para não dizer apenas bem dele e de mim - porque os homens a sério têm todos defeitos - vou relatar um episódio que aconteceu durante um passeio que fizemos à Praia de Mira, num automóvel emprestado pelo meu irmão Fernando. Julgo que íamos só os dois casais. Pelo menos, não me lembro de termos levado as crianças, que não caberiam todas no Mini. À hora do almoço, comemos bem e bebemos melhor.
A minha experiência de condução era, à data, limitada. Eu estacionara o carro num pátio a que se tinha acesso por um portão. À entrada, tudo correu bem mas, à saída, parecia que os pilares se haviam aproximado. Pedi-lhe ajuda para orientar a manobra. O Agostinho, solícito como sempre, foi dando instruções:
- Um pouco mais para a direita... Assim, está bem.
Eu tinha as minhas dúvidas
- Achas que passo?
- Avança à vontade...
Avancei e devolvi o carro ao meu irmão com um belo risco na porta do lado do pendura.
A cultura dionísica prende e o Agostinho, no regresso a Cabo Verde, continuou a viver como nos tempos de Coimbra. Visitei-o no Mindelo anos após a ataxia severa que o atingiu bruscamente e o impediu, para sempre, de tocar violão. Mesmo no infortúnio, sempre amparado pela Bernardette, continuava a ser um cavalheiro animoso, digno e cordial.
Fotografias:
1- O Agostinho, comigo e com o Néne.
2 - O Agostinho com a minha filha Cláudia.
3- Os nossos filhos mais velhos, o Júlio e a Marisa.
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