TAMEGÃO
Este blogue tem incluído
ocasionalmente artigos de amigos e, até, um livro da minha neta Leonor. Chegou
a vez do “Tamegão”, uma criação do Nunes Pinto, amigo de longa data.
Carlos Nunes Pinto nasceu na Bibala (Vila
Arriaga), no sul de Angola. Naquele tempo, a vila estava infestada de
paludismo. Se um miúdo, na casa de banho da escola, via sangue na urina,
regressava a chorar. Fora marcado pela morte. Era a biliosa, uma complicação
grave da malária.
As mães separavam-se dos
filhos lactentes e enviavam-nos para Moçâmedes, onde tinham maiores
probabilidades de sobreviver. Quando os pais do Carlos viram crescer os dois
primeiros filhos, acharam que tinham a descendência assegurada e resolveram
arriscar. Geraram outro par de rapazes e criaram-nos ali mesmo. Quem conhece o
Carlos, vê que o fizeram bem.
Passavam-se poucas coisas
naquela terra encalhada entre o deserto do Namibe e a Serra da Chela. O tempo
sobrava. Escorria devagar. Para o entreter, inventavam-se histórias e
lembravam-se lendas.
A oralidade dos contos
africanos está bem presente nesta obra. O autor aprendeu-a nos serões da
Bibala, no tempo em que as pessoas ainda se escutavam umas às outras. Não havia
televisão, e os poucos aparelhos de rádio nem sempre funcionavam.
A História é cega. Impôs a
sua força. Meio milhão de portugueses deixou África. A grande maioria
instalou-se em Portugal. Muitos nunca tinham estado cá. Eram filhos, ou netos
de emigrantes. Deixaram quase tudo o que tinham. Trouxeram o saber fazer.
Essa capacidade técnica,
em áreas diversas, facilitou a integração e empurrou o País para um salto em
frente. Com a descolonização, Portugal ficou mais rico e as antigas colónias
mais pobres.
O autor mergulha nas
recordações da infância, modifica-as e recreia-se. Procura sistematicamente
cruzar dois saberes, o dos brancos e o dos negros. Integrados, poderiam fazer
uma Angola melhor. Não aconteceu assim.
Atribuir culpas é tão
inútil como julgar a História. Os contos do Tamegão são histórias de amor e de
perda. Representam uma tentativa pessoal de reconciliação com o passado. Espero
que vos encantem tanto quanto me encantaram.
Dito do Tamegão:
“Verdade às vezes não é
verdade, só é verdade aquilo que não é mentira “
I
Quando aquilo que vou
contar ocorreu, devia ter eu os meus doze anitos, porque me lembro de ter sido
nessa altura que aprendi, em ciências, o ciclo da água.
Sempre ouvi dizer, em Vila
Arriaga, que certo dia, quando as chuvas grandes duraram sete dias e sete
noites, caíram peixes do céu. Os velhotes diziam que tinha chovido peixes.
Achei que era impossível. Lá
chover peixes eu ainda engolia, mas a minha tenra idade não permitia que fosse
mais além. Rematei apenas para mim: isto são coisas que a ciência faz para quebrar
o encantamento das lendas…
Como se tinha quebrado
para mim aquela verdade, repetida durante anos, e como não queria aceitá-la tão
facilmente, decidi perguntar-lhe:
− Tamegão, tu te lembras
do dia que choveu peixe?
− É verdade, até os filhos
dos negros comeu. Caiu tanto peixe lá de cima que ficou todo espalhado na rua
(nunca utilizava a palavra Céu, não sei se por ignorância, se por se sentir
acima dele – substituía-a por “cima”).
− Menino, choveu tanto,
tanto, que rio Giraul engoliu o comboio. O comboio nunca mais passou, não passou
muitos meses. Só passava ali − e apontava com o sexto dedo para um lugar onde
nem havia via-férrea.
Chamei a sua atenção para
isso.
− Se eu viu o fumo como é
que não tem linha?!
Nem retorqui, porque me
apercebi que o seu tom de voz se tinha alterado.
− Se o menino não
acredita, não precisa falar mais.
Fiquei quase sem sangue
porque, confesso, também tinha medo do Tamegão.
Tamegão, segundo se dizia,
era feiticeiro e virava matchituca em certa fase da lua, não sei se na nova se
na cheia.
Teria nascido há mais de
noventa anos, não se sabe onde, porque era conhecido que o preto só pinta
quanto tem três vezes trinta.
Nasceu com um defeito na
mão direita – tinha seis dedos.
Era esse sexto dedo que
ficava coberto de pelos na tal fase da lua; não sei que nome teria esse dedo,
não era polegar nem indicador. Parece-me que naquele tempo ainda não se dava
nome a isso.
Por culpa desse facto, ou
talvez pelo aproveitamento que o Tamegão fazia dele, o velho vivia isolado,
numa casa de pau-a-pique com três grandes mangueiras nas traseiras (se é que as
casas dos negros têm traseiras).
Só a mais de um quilómetro
começavam a espalhar-se as cubatas dos outros, porque todos tinham medo do
Tamegão.
Não era para menos, porque
a morte de algum negro de idade avançada era sempre atribuída aos feitiços e
quimbandices do Tamegão. Já o mesmo não se passava com a dos jovens e crianças.
Contava-se que Tamegão
sabia ler, porque estava muitas vezes sentado no tronco de uma árvore, de livro
na mão.
Julgo que fazia isto para
se mostrar superior aos olhos dos outros.
Tanto se falou disso que o
Administrador, que já começava a acreditar, mandou que um sipaio o fosse
buscar, porque, entretanto, tinha eclodido o terrorismo e era incómodo ter
gente letrada na zona.
− É verdade que tu sabes
ler?
A vaidade foi mais forte e
respondeu que sim.
− Então lê isto!
Atirou-lhe um edital para as mãos.
− Esse papel eu não sei,
só os livros que o Padre Carlos me mandou eu sei.
− Então onde é que
aprendeste a ler esses livros?
− Naquele buraco da Serra,
onde tem aquela cobra que fala.
Já sem paciência nenhuma,
o Administrador mandou-o em liberdade.
Dizia-se que se alimentava
apenas das mangas das suas mangueiras, que começavam a amarelecer em Dezembro. Ficava, no entanto, a dúvida: sobravam muitos meses, mesmo muitos, depois da época das
mangas.
Perguntei-lhe se era
verdade.
Respondeu-me:
− Ninguém acredita,
menino, porque mais ninguém sabe guardar mangas como eu.
Fingi que acreditava,
porque os meus verdes anos me levaram a pensar que lá teria o seu processo de
conservação. Fosse qual fosse, também não me interessava.
Era talvez mais evoluído
do que os brancos que salgavam o peixe e a carne de porco, (tudo isto, é claro,
antes do aparecimento das geleiras a petróleo, de torcidas fumarentas e mal
cheirosas).
Menos acreditei ainda
quando vi ali perto um galo preto e luzidio picando a areia do chão.
− Pelo menos galo tu
comes?
− Não, menino, esse galo
não tem carne dentro, tem o espírito de um velho que morreu cansado.
Não tinha o direito de
duvidar, nem tão pouco o de acreditar.
A tarde tinha passado
depressa, ou a noite chegado cedo. Despedi-me, talvez agradecendo.
Quando já me distanciava
uns dez metros, ouvi, atrás de mim, um grande vozeirão.
− Há mais – Os meus pés,
ainda pequenos, pisaram gelados a terra africana. Na tua escola, cinco e cinco
são dez, na minha mão são onze!
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