ESTRANHOS
ALMIRANTES
II
ZHENG
HE
Pintura existente num templo de Penang, na Malásia e representando Zheng He e alguns dos seus navios
Nos primeiros anos do
século XV, deu-se uma inusitada reviravolta na maneira chinesa de estar no
mundo. Tradicionalmente, os chineses assentavam a sua política e a sua economia
no isolamento e na auto-subsistência agrícola. Seguiam os ensinamentos de
Confúcio, promovendo a virtude, a organização e a estabilidade social. No início
do século XV e durante perto de 30 anos, assistiu-se a uma espécie de
revolução comercial em que uma enorme esquadra imperial percorreu o Mar da
China e o Oceano Índico, até à costa oriental de África, divulgando e vendendo
produtos chineses nos países ribeirinhos.
Imperador Yongle
O imperador Zhu Di, ou
Yongle fez-se coroar pela força das armas, revoltando-se contra o seu sobrinho Jianwen,
herdeiro legítimo do trono chinês. Tornou-se, em 1402, o terceiro imperador da
dinastia Ming. Pôs de lado a política de isolamento e abriu a China ao mar. Fez
assim nascer um almirante lendário, o eunuco Zheng He.
Bússola - uma descoberta chinesa
Quase cem anos antes de
Vasco da Gama, Zheng He liderou uma esquadra de 250 navios, tripuladas por
quase 30.000 homens e transportando 100.000 toneladas de mercadorias. Entre
1405 e 1433 realizou sete grandes viagens pelos mares da China e pelo Oceano
Índico. Os seus juncos, apelidados de bao
chuan, os navios do tesouro, chegariam a ter 120 metros de comprimento.
Alguns deles seriam capazes de transportar 2.000 toneladas. Os maiores navios da
armada de Vasco da Gama eram cinco vezes menores em comprimento e muitas
vezes menos em capacidade de carga.
Tamanho comparado dos navios de Zheng He e de Colombo
A navegação no Índico tem
de ter em conta as correntes marítimas e as monções. A estação das chuvas dura
de julho a setembro e acompanha-se de ventos de sudoeste. De dezembro ao começo
de maio, o vento predominante é de nordeste. As viagens de ida e volta tinham
de ser planeadas de acordo com estas realidades.
O almirante terá visitado
cerca de 30 países. Passou por Taiwan, pelas Filipinas, Sumatra, Borneo,
Celebes, Java, Timor, Cambodja, Singapura, Malaca, Ceilão, Mar Vermelho, Pérsia
e Arábia. Ladeou a costa oriental de África até Madagascar. Há quem diga que
atingiu a Austrália. Embora não se tenha deslocado ao Japão, a sua vassealagem
foi conseguida pela única vez na História. As trocas comerciais entre os dois
países aumentaram então substancialmente.
Mapamundi Kangnido,de 1402. É claramente sinocêntrico
As viagens duravam até
mais de dois anos.
Consta que “ O almirante” recorreu
poucas vezes à força - em Sumatra, em 1404, em Ceilão em 1410 e novamente em
Sumatra em 1413, principalmente contra piratas chineses.
As sete notáveis expedições
marítimas permitiram estender a influência da dinastia Ming do Índico ao Pacífico,
fazendo circular por uma vasta região os produtos chineses mais apreciados,
entre os quais se contavam a porcelana, a seda, o chá e as moedas de cobre. Os
chineses importavam produtos exóticos, muitos deles de luxo, como pedras preciosas,
especiarias, incenso, ervas medicinais, ópio, madeiras tropicais, marfim e cavalos
árabes.
Como lhes era atribuído um
grande valor, os juncos de Zheng He foram apelidados de “navios do tesouro”. Os
navios traziam também animais africanos, como a primeira girafa vista na China.
Zheng He nasceu com o nome
de Ma He. Era o segundo filho de uma família muçulmana. Capturado aos 12 anos
de idade, durante uma campanha militar, foi castrado para servir na corte
imperial. Teve a sorte de se tornar companheiro de infância do futuro
imperador. Mais tarde, ajudou-o na luta contra o imperador Jianwen. Participou
em diversas campanhas militares e revelou-se um excelente estratega.
Yongle reconheceu tanto a sua coragem em combate
como a sua habilidade para gerir as intrigas da corte. Nomeou-o diretor dos
servos do palácio (uma espécie de chefe de gabinete). Deu-lhe o nome chinês de
Zheng He (Zheng era o nome do cavalo de batalha favorito do novo imperador). Mais
tarde, fê-lo supervisionar a construção da “Frota do Tesouro”.
Morto Yongle, Zhen He
serviu ainda os dois imperadores seguintes, Hongxi e Xuande. Foi este último
que o nomeou, em 1430, para chefiar a sétima expedição ao “Oceano Ocidental”,
de onde não regressaria. Morreu durante a viagem de regresso, em 1433.
Terminaram as viagens da
“Frota do Tesouro”.
Alguns historiadores
sugerem que a motivação de Zhu Di seria legitimar a sua usurpação do trono, na
China e no mundo conhecido pelos chineses. Há meandros da mentalidade oriental
que nós desconhecemos, mas não me parece que os habitantes de Sumatra e de
Ceilão estivessem preocupados com a legitimidade do imperador chinês. Havia de
impressioná-los mais o número de navios da frota chinesa e a quantidade de
guerreiros que transportava.
O usurpador Zhu Di
governou de 1402 a 1424. Deixou a sua marca na História da China. Para além de
quebrar o isolamento marítimo do seu país, mandou reconstruir o Grande Canal, recuperou
e aumentou a Grande Muralha e transferiu a capital de Nanquim para Pequim, onde
fez edificar a Cidade Proibida.
No entanto, feitas as
contas, os lucros da “Rota do Tesouro”, se os havia, cobriam uma parte ínfima
dos gastos com os grandes projetos do imperador. Foi necessário aumentar os
impostos e, mesmo assim, os cofres imperiais esvaziaram-se. A inflação
disparou. Os confucionistas, que sempre se tinham oposto ao desenvolvimento da
política externa, fizeram ouvir as suas vozes. Era necessário acabar com as
despesas grandiosas, limitar o comércio marítimo, regressar ao isolamento e
promover a agricultura tradicional.
Mortos Zhu Di e Zheng He,
terminou a “revolução comercial” chinesa e o império voltou-se outra vez para
si próprio. As viagens de comércio foram abandonadas. Um édito imperial proibiu
mesmo a construção de navios oceânicos. Com o tempo, a tecnologia de construção
de grandes navios acabou por se perder. Até os registos da epopeia marítima
foram mandados queimar.
A grande maioria dos países
das costas do Índico encontrava-se culturalmente atrasada em relação à China. As
armadas do grande navegador Zheng He divulgaram no Oriente os avanços da civilização
chinesa.
Por ironia do destino, o
primeiro navio chinês de que há notícia segura a contornar o Cabo da Boa
Esperança foi um junco que partiu de Hong Kong e chegou a Londres em 1848.
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