DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 14 de abril de 2016


ESTRANHOS ALMIRANTES

II

ZHENG HE

Pintura existente num templo de Penang, na Malásia e representando Zheng He e alguns dos seus navios 

Nos primeiros anos do século XV, deu-se uma inusitada reviravolta na maneira chinesa de estar no mundo. Tradicionalmente, os chineses assentavam a sua política e a sua economia no isolamento e na auto-subsistência agrícola. Seguiam os ensinamentos de Confúcio, promovendo a virtude, a organização e a estabilidade social. No início do século XV e durante perto de 30 anos, assistiu-se a uma espécie de revolução comercial em que uma enorme esquadra imperial percorreu o Mar da China e o Oceano Índico, até à costa oriental de África, divulgando e vendendo produtos chineses nos países ribeirinhos.

                          Imperador Yongle

O imperador Zhu Di, ou Yongle fez-se coroar pela força das armas, revoltando-se contra o seu sobrinho Jianwen, herdeiro legítimo do trono chinês. Tornou-se, em 1402, o terceiro imperador da dinastia Ming. Pôs de lado a política de isolamento e abriu a China ao mar. Fez assim nascer um almirante lendário, o eunuco Zheng He.

                   Bússola - uma descoberta chinesa

Quase cem anos antes de Vasco da Gama, Zheng He liderou uma esquadra de 250 navios, tripuladas por quase 30.000 homens e transportando 100.000 toneladas de mercadorias. Entre 1405 e 1433 realizou sete grandes viagens pelos mares da China e pelo Oceano Índico. Os seus juncos, apelidados de bao chuan, os navios do tesouro, chegariam a ter 120 metros de comprimento. Alguns deles seriam capazes de transportar 2.000 toneladas. Os maiores navios da armada de Vasco da Gama eram cinco vezes menores em comprimento e muitas vezes menos em capacidade de carga.

        Tamanho comparado dos navios de Zheng He e de Colombo

A navegação no Índico tem de ter em conta as correntes marítimas e as monções. A estação das chuvas dura de julho a setembro e acompanha-se de ventos de sudoeste. De dezembro ao começo de maio, o vento predominante é de nordeste. As viagens de ida e volta tinham de ser planeadas de acordo com estas realidades.
O almirante terá visitado cerca de 30 países. Passou por Taiwan, pelas Filipinas, Sumatra, Borneo, Celebes, Java, Timor, Cambodja, Singapura, Malaca, Ceilão, Mar Vermelho, Pérsia e Arábia. Ladeou a costa oriental de África até Madagascar. Há quem diga que atingiu a Austrália. Embora não se tenha deslocado ao Japão, a sua vassealagem foi conseguida pela única vez na História. As trocas comerciais entre os dois países aumentaram então substancialmente.

          Mapamundi Kangnido,de 1402. É claramente sinocêntrico

As viagens duravam até mais de dois anos.
Consta que “ O almirante” recorreu poucas vezes à força - em Sumatra, em 1404, em Ceilão em 1410 e novamente em Sumatra em 1413, principalmente contra piratas chineses.
As sete notáveis expedições marítimas permitiram estender a influência da dinastia Ming do Índico ao Pacífico, fazendo circular por uma vasta região os produtos chineses mais apreciados, entre os quais se contavam a porcelana, a seda, o chá e as moedas de cobre. Os chineses importavam produtos exóticos, muitos deles de luxo, como pedras preciosas, especiarias, incenso, ervas medicinais, ópio, madeiras tropicais, marfim e cavalos árabes.
Como lhes era atribuído um grande valor, os juncos de Zheng He foram apelidados de “navios do tesouro”. Os navios traziam também animais africanos, como a primeira girafa vista na China.


Zheng He nasceu com o nome de Ma He. Era o segundo filho de uma família muçulmana. Capturado aos 12 anos de idade, durante uma campanha militar, foi castrado para servir na corte imperial. Teve a sorte de se tornar companheiro de infância do futuro imperador. Mais tarde, ajudou-o na luta contra o imperador Jianwen. Participou em diversas campanhas militares e revelou-se um excelente estratega.
 Yongle reconheceu tanto a sua coragem em combate como a sua habilidade para gerir as intrigas da corte. Nomeou-o diretor dos servos do palácio (uma espécie de chefe de gabinete). Deu-lhe o nome chinês de Zheng He (Zheng era o nome do cavalo de batalha favorito do novo imperador). Mais tarde, fê-lo supervisionar a construção da “Frota do Tesouro”.
Morto Yongle, Zhen He serviu ainda os dois imperadores seguintes, Hongxi e Xuande. Foi este último que o nomeou, em 1430, para chefiar a sétima expedição ao “Oceano Ocidental”, de onde não regressaria. Morreu durante a viagem de regresso, em 1433.
Terminaram as viagens da “Frota do Tesouro”.
Alguns historiadores sugerem que a motivação de Zhu Di seria legitimar a sua usurpação do trono, na China e no mundo conhecido pelos chineses. Há meandros da mentalidade oriental que nós desconhecemos, mas não me parece que os habitantes de Sumatra e de Ceilão estivessem preocupados com a legitimidade do imperador chinês. Havia de impressioná-los mais o número de navios da frota chinesa e a quantidade de guerreiros que transportava.
O usurpador Zhu Di governou de 1402 a 1424. Deixou a sua marca na História da China. Para além de quebrar o isolamento marítimo do seu país, mandou reconstruir o Grande Canal, recuperou e aumentou a Grande Muralha e transferiu a capital de Nanquim para Pequim, onde fez edificar a Cidade Proibida.
No entanto, feitas as contas, os lucros da “Rota do Tesouro”, se os havia, cobriam uma parte ínfima dos gastos com os grandes projetos do imperador. Foi necessário aumentar os impostos e, mesmo assim, os cofres imperiais esvaziaram-se. A inflação disparou. Os confucionistas, que sempre se tinham oposto ao desenvolvimento da política externa, fizeram ouvir as suas vozes. Era necessário acabar com as despesas grandiosas, limitar o comércio marítimo, regressar ao isolamento e promover a agricultura tradicional.
Mortos Zhu Di e Zheng He, terminou a “revolução comercial” chinesa e o império voltou-se outra vez para si próprio. As viagens de comércio foram abandonadas. Um édito imperial proibiu mesmo a construção de navios oceânicos. Com o tempo, a tecnologia de construção de grandes navios acabou por se perder. Até os registos da epopeia marítima foram mandados queimar.
A grande maioria dos países das costas do Índico encontrava-se culturalmente atrasada em relação à China. As armadas do grande navegador Zheng He divulgaram no Oriente os avanços da civilização chinesa.


Por ironia do destino, o primeiro navio chinês de que há notícia segura a contornar o Cabo da Boa Esperança foi um junco que partiu de Hong Kong e chegou a Londres em 1848.




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