APONTAMENTOS DE FIM DE TARDE
Moro há muitos anos em Setúbal. A minha casa (centenária) fica junto
ao Jardim da Algodeia.
Ao começo da noite, acompanho o meu cão num passeio pelo jardim.
O Sebastião sujeita-se mal à trela. É o quinto cão, na minha vida adulta e, de
longe, o mais difícil de conduzir. O meu genro Francisco, no dia em que o
conheceu, aconselhou-me a dar-lhe Ritalina. É um medicamento usado em crianças
hipercinéticas. Não parece que o nosso Presidente o tenha tomado.
O Sebastião descende de caçadores. Nunca está quieto e tem um
amor exagerado à liberdade. Durante mais de um ano, libertei-o ao começo de
cada noite. Corria e seguia os fios de cheiro até se fartar. Regressava a casa
cerca de uma hora depois, com algumas variações no horário. Tive de lhe cercear
esse hábito. Soube que havia quem estivesse a pensar fazer queixa à autoridade
municipal, embora ele não constituísse ameaça para pessoas ou animais,
excetuando gatos e patos. O problema dele é ser simpático demais. Torna-se
chato.
Falemos dos patos que vivem no lago do jardim. Não é preciso
saber adivinhar pensamentos caninos para estar certo de que o Sebastião sonha apanhar
um pato. Não me parece que venha a ter êxito nesse projeto. As aves esperam que
ele se chegue bastante perto e, depois, refugiam-se na água, onde manobram
melhor que os cães. Os patos que se afastam para longe, no relvado, levantam
voo mal o cão se aproxima. Julgo que o Sebastião se terá de conformar com a
ração que lhe ponho no prato.
Vi esta noite o primeiro morcego do ano. O voo aos supetões é
característico e inconfundível. Chocou-me ter passado tanto tempo sem me
lembrar deles. Noutro tempo, quando o canavial não dera ainda lugar ao relvado
do jardim, os morcegos, ao lusco-fusco dos dias quentes substituíam as
andorinhas na caça aos insetos. Agora, por falta de “pasto”, os morcegos
sumiram e as andorinhas distanciaram-se. Dantes, eu percorria no escuro as
veredas do canavial acompanhado pelo Brutus e detinha-me a apreciar os enxames
de pirilampos, quando era o tempo deles. Pirilampos, agora, nem vê-los. Quanto
ao Brutus, morreu novo, de leishmaniose. O campo afasta-se da cidade.
Nem tudo foi mau, na passagem do canavial a jardim. A cidade
ganhou outro espaço de lazer e número de mosquitos reduziu-se, embora haja anos
em que continuam a atacar com força.
Ontem, por voltas das 22 horas, ainda havia duas famílias a
acompanhar as suas crianças que brincavam no pequeno parque infantil.
No meu passeio, passo por pequenos grupos de moços e moças
sentados nos bancos ou no muro que limita o Rio da Figueira. É frequente sentir
junto deles o cheiro da canábis fumada.
Na estrada, um adolescente alto deslizava sobre patins a
grande velocidade, rebocado por cão que, de longe, me pareceu ser Labrador.
Gostei da exibição do puto, mas fiquei com o receio de que ele não chegue a
velho. Patinar assim é correr riscos apreciáveis. Pelo menos no aspeto imediato,
é mais perigoso do que fumar liamba. O meu Sebastião também apreciou a correria
e tive de me empenhar para o conter.
Anunciaram há dias que o nosso país é o terceiro mais seguro
do mundo. Talvez o seja, mas as imagens que vamos colhendo da televisão
marcam-nos o subconsciente. Passei por um homem novo sentado sozinho num banco
afastado. Tinha ao lado um saco de papel e estava a alimentar-se. Na volta
seguinte, o homem desaparecera, enquanto o saco continuava poisado no banco. Achei
que lhe faltava espírito cívico, até porque havia perto depósitos de lixo. No
entanto, quando me aproximei, julguei distinguir um telemóvel ao lado do saco
de papel.
Continuei a caminhar. O dono do telemóvel estaria por ali perto.
Terá ido urinar atrás de algum arbusto. Fui controlando a imaginação enquanto
regressava a casa. O jovem dificilmente se poderia ter suicidado. Do alto do
muro ao leito seco do rio irão cerca de dois metros. Por outro lado, uma
explosão ali provocaria apenas estrondo. Quando muito, chamuscaria as oliveiras
que foram transplantadas para aquele lugar. Não, aquele não era local para um
atentado terrorista. Pelo menos, àquela hora.
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