A MINHA EXPERIÊNCIA COMO MÉDICO DO
NAVIO HOSPITAL GIL EANNES
II O PRIMEIRO GIL EANNES
A
história do primeiro Gil Eannes começou em 1916. Os submarinos alemães estavam
a infligir pesadas perdas à marinha mercante britânica. Os ingleses pretendiam
apoderar-se das várias dezenas de cargueiros alemães refugiados nos nossos
portos. Em março, os navios foram requisitados e a Alemanha declarou guerra a
Portugal.
Alguns
navios ficaram cá. Um deles chamava-se Lahneck. Media 85 metros de comprimento
e era capaz de transportar 2.000 toneladas de carga.
O
cargueiro alemão mudou de nome e foi transformado em cruzador auxiliar da
Marinha portuguesa. Durante a guerra, foi usado no transporte de tropas. Serviu
depois a carreira dos Açores.
O
bacalhau ganhara um lugar importante na alimentação dos portugueses. No
interior do País, que não tinha acesso ao peixe fresco, constituía uma das
fontes mais baratas de proteínas. Em especial, a região norte consumia uma
parte importante do bacalhau seco pescado ou importado. O Poder estava
interessado em alcançar a autossuficiência nacional neste produto.
Os
pescadores portugueses que se dedicavam à pesca do bacalhau trabalhavam em
condições difíceis. Ocorriam muitas doenças e algumas mortes.
Era
necessário um navio que apoiasse a frota em lugar de cada um interromper a
pesca e ir a terra sempre que necessitava de água, carvão, isco, sal ou
alimentos frescos. Fazia falta, sobretudo, a assistência médica. Seria
importante o exame médico dos pescadores antes do embarque, mas a prevenção
tardou a ser efetuada. A tuberculose pulmonar era frequente entre os
pescadores.
SAINTE JEANNE
D`ARC
Os
franceses tinham um navio hospital, o Sainte Jeanne d´Arc, que acompanhava a
sua frota pesqueira e prestava pontualmente apoio a pescadores portugueses
doentes. Os franceses ajudavam, mas queixavam-se das despesas que tinham de
suportar e achavam que os armadores portugueses deveriam participar no
financiamento.
A
marinha francesa dispunha de navios hospitais de assistência à pesca longínqua
desde o fim do século XIX. O primeiro foi o Saint Pierre, lançado ao mar em
1886.
Em
janeiro de 1922, a Associação dos Oficiais da Marinha Mercante de Ílhavo
dirigiu um requerimento ao Ministro da Marinha. Lembravam que a pesca do
bacalhau ocupava mais de 50 navios portugueses que empregavam cerca de 3.000
homens.
LUGRE PORTUGUÊS DE TRÊS MASTROS (FINAL DO SE. XIX)
Pediam
que uma das várias embarcações nacionais disponíveis fosse adaptada a navio
hospital e acompanhasse a nossa frota bacalhoeira até aos Bancos da Terra Nova.
O
governo levou a petição a sério. Em 1917, os capitães dos navios bacalhoeiros
tinham feito diversas exigências aos armadores. O conflito laboral arrastou-se
e, nesse ano, os lugres não partiram para a pesca do bacalhau.
O cruzador Carvalho Araújo, que levava um
médico a bordo, foi destacado para a Terra Nova, na campanha de 1923.
CARVALHO ARAÚJO
Decidiu-se
então adaptar o Lahneck/Gil Eannes a navio de assistência. Foi à Holanda fazer
as transformações necessárias e partiu para a Terra Nova em maio de 1927.
Dispunha de médico, farmácia e enfermeiro. Era muito mais do que um navio
hospital. Fornecia água, carvão e sal aos navios de linha. Trazia de terra
animais para abate, melhorando a alimentação dos pescadores, sempre deficitária
em produtos frescos antes da introdução das instalações frigoríficas, ocorrida quase
três décadas mais tarde. Como saía depois dos navios de pesca, transportava o
correio entretanto enviado. Além disso, tinha serviço telegráfico.
A
viagem inaugural não teve seguimento imediato e, em 1928, o Gil Eannes foi
usado no transporte de presos políticos para a Guiné e para Angola. Regressaria
à Terra Nova nos dois anos seguintes. Foi, depois, utilizado para transportar
guarnições para Macau e presos políticos para Timor. Fez viagens para a
Inglaterra até 1936.
Nesse
ano, foi lançado um programa de renovação da frota pesqueira portuguesa, tendo
sido melhorados ou construídos perto de 50 navios. A partir de 1940, passariam
a construir-se sobretudo arrastões.
Em
1937 foram instituídas as Casas dos Pescadores, integradas na organização
cooperativa do trabalho marítimo. Tinham essencialmente funções de previdência
social, de acordo com os ideais da Democracia Cristã. Salazar, enquanto
estudava em Coimbra fora dirigente do Centro Académico de Democracia Cristã
(C.A.D.C.). Anos mais tarde, teve o cuidado de esclarecer que a ênfase estava
na palavra «cristã» e não em «democracia».
Algum tempo depois, a Sociedade Nacional dos
Armadores de Bacalhau transformou-se em Grémio.
Foi,
significativamente, a partir do ano de 1937 que o Gil Eannes passou a servir
regularmente a frota bacalhoeira, após um intervalo de 10 anos. Navegou
integrado na nossa Marinha de Guerra até 1941. Em 1942 foi desarmado e entregue
à Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau. Estava-se em plena guerra.
Em
agosto de 1942, os serviços secretos britânicos suspeitaram de que tanto o
arrastão Álvaro Martins Homem como o Gil Eannes estavam a comunicar aos
alemães, via rádio, a posição de navios aliados com que se cruzavam. Os
ingleses pensaram em afundar o Gil Eannes, mas reconsideraram. Intercetaram o
nosso navio hospital na viagem de regresso a Lisboa. Prenderam e levaram com
eles o alegado espião Gastão Ferraz, operador de rádio.
Fontes: Gil Eannes.
Câmara Municipal de Viana do Castelo. Comissão Especial pró Gil Eannes, 1997.
Fotografias: Revista
Oceanos nº 45, Internet, arquivo pessoal.
Também publicado no blogue historinhasdamedicina.
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