DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 20 de abril de 2014

               A MINHA EXPERIÊNCIA COMO MÉDICO DO
                     NAVIO HOSPITAL GIL EANNES



                                  V
                         MÉDICOS  A BORDO  
      
Aqui está a equipa médica do Gil Eannes, em 1970. Não éramos muitos, como veem: eu, do Dr. Barros Pereira e os enfermeiros Matos e Bichão.



Ao centro estão o Capitão de Porto nos Mares da Terra Nova e Gronelândia, comandante Gaspar e o capelão, padre Magalhães.
Eis a equipa de assistência completa:



Quando embarcámos, éramos médicos jovens. Eu não tinha prática de Medicina não tutelada. Nenhum de nós tinha experiência cirúrgica. O conhecido bloco operatório do navio não podia ser rentabilizado. Não havia técnicos de Fisioterapia nem quem soubesse fazer análises clínicas. Vivíamos os últimos anos da pesca à linha e o Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau começara a desinvestir na assistência.


Foram-nos buscar ao Exército porque éramos os médicos mais baratos (e também mais inexperientes) que havia no mercado. Transferiram-nos para a Reserva Naval e deixaram-nos estar dois anos no posto de Aspirante, para nos pagarem menos.
Cada navio de pesca tinha um enfermeiro a bordo. Era o nosso interlocutor privilegiado. Havia uma pequena farmácia em cada embarcação.
Quando aportávamos a San Jones, os doentes vinham à consulta ao navio. No alto mar, quando as embarcações estavam próximas, faziam o mesmo.


Se algum doente apresentava dificuldades de mobilização, éramos nós que o visitávamos.
          


Como o estado do tempo variava, certa vez, após uma consulta de meia hora, tive de aguardar três dias num navio de pesca antes de haver condições para regressar com segurança ao Gil Eannes.


Existia uma biblioteca a bordo, com alguns livros médicos. Davam jeito essencialmente para quando ocorriam situações a que não estávamos habituados.
A dificuldade em tratar doentes que se encontravam a muitas milhas de distância tem hoje, adaptada aos tempos modernos e às técnicas de imagem, um nome sonoro: tele-medicina. Fomos, de facto, pioneiros nessa área. Tínhamos de avaliar a situação clínica através das descrições que os enfermeiros faziam ao radio-telefone. Conversávamos e tentávamos chegar a um diagnóstico.


Tratando-se duma população geralmente jovem, a ameaça mais temida para a vida era a apendicite aguda. É, como se sabe, uma situação que se pode deteriorar em poucas horas. Sendo impensável perder vidas, desde que o pudéssemos evitar, sentíamos a obrigação de interromper a faina da pesca, de que dependia o sustento de toda aquela gente, apenas quando fosse realmente necessário. Percebíamos de algum modo que o erro mais grave, logo a seguir a deixar perigar o doente, era desencadear um alarme falso e fazer arribar um navio desnecessariamente.


Conversávamos repetidamente com os enfermeiros, procurando seguir com intervalos curtos a evolução dos quadros clínicos.
Inventei alguns truques. Distribuí por todos os navios um desenho com o abdómen do doente dividido em quadrículas, sinalizadas como no jogo da Batalha Naval. Era assim mais fácil entender o ponto exato das queixas dolorosas. «A 3» era a fossa ilíaca direita…
A minha vida de médico dos pescadores do bacalhau não se limitou ao Gil Eannes. Passei um mês em 1970 e dois em 1971 em navios de linha. Cheguei a estar 70 dias sem pôr um pé em terra. O isolamento trazia algumas vantagens: não vinha ninguém trazer a gripe para bordo.
O trabalho era pouco e aborrecia-me. Ocupava o tempo estudando, lendo, pescando (nas poucas vezes em que calhava) ou jogando às cartas. Na Gronelândia, no verão era sempre dia. Pelas 22.30 corria as cortinas e acendia a luz eléctrica, para fingir que era noite. 
A patologia com que deparávamos não nos provocava grandes dores de cabeça. Com a humidade, era comum o reumatismo. Os horários irregulares da alimentação tornavam frequentes as doenças do aparelho digestivo. Eram frequentes os panarícios, consequentes a picadas de anzol e tivemos de enfrentar casos sucessivos de escabiose, que a confinação dos espaços para dormida e a limitação das condições de higiene tornavam quase epidémica. Para que fosse disponibilizada a um doente água suficiente para um banho completo, era precisa uma recomendação médica. Havia também alguma patologia respiratória, geralmente benigna. Consta que, anos atrás, antes da existência das câmaras frigoríficas, era comum o escorbuto.
Raramente tivemos mais de 20 das camas da enfermaria ocupadas por doentes internados. 
Durante os mais de doze meses em que andei embarcado, perdemos três navios. Morreram sete homens nos naufrágios. Pessoalmente, não passei por qualquer situação de perigo, apesar de ter havido um pequeno incêndio no Gil Eannes. O meu colega e amigo Manuel Barros Pereira foi menos afortunado. Desenvolveu uma apendicite aguda. Receoso da pouca experiência dos colegas que o governo dinamarquês colocava em Godthàb, passou algumas horas à entrada do porto da capital da Gronelândia, enquanto se enchia de antibióticos, a ver se a crise aguda passava e se punha em estado de navegar para St. John`s. Por fim lá seguiu, mas o Gil Eannes deparou com um banco de gelo pela frente e foi forçado a contorná-lo.



Passadas 24 horas, progredira o equivalente a duas horas de viagem normal. Eu estava no Neptuno. Trocávamos mensagens jocosas pela fonia, mas estávamos preocupados. Felizmente, tudo correu bem. O meu colega foi operado por um cirurgião canadiano e veio fazer o período pós-operatório para o mar. Decorreram mais de quarenta anos e terminou há muito a guerra colonial que obrigava os jovens portugueses a passarem dois anos em missão de combate em algum dos recantos do Império. 


   De certo modo, fui afortunado. Ninguém me deu tiros e, embora tivesse andado embarcado durante mais de 370 dias, trabalhei em Lisboa durante dois dos quatro semestres que durou a minha comissão. Será difícil esquecer San Jones, os Bancos da Terra Nova e os mares da Gronelândia. Naveguei algumas vezes acima do Círculo Polar Árctico.
   Ironicamente, no processo de selecção dos candidatos que pretendiam trabalhar na vizinhança dos icebergs, contou a elevada classificação que obtive no curso de Oficiais Milicianos Médicos em... Medicina Tropical. 




Fontes:
Amador, Licínio Ferreira – O Gil Eanes. Internet, dezembro 2013.
BERRUE, Pierre. Navires-hôpitaux des Œuvres de Mer de 1896 à 1939. Internet, 2009.
Gil Eannes. Câmara Municipal de Viana do Castelo, Comissão Especial pró Gil Eannes, 1997.
Klein, Randall T. Jr. The codfish industry in northern Portugal. United States Deferment of the Interior. Fish and Wildlife Service. Washingt D. C. February 1950.
OCEANOS – Terra Nova – A epopeia do bacalhau. Nº 45 – Janeiro/março 2001. 


Também publicado no blogue historinhasdemedicina.

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