DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

                     TRÓTSKI


                                II

ASCENÇÃO DE STALIN. EXPULSÃO DA URSS

   Em Março de 1918, Leon Trótski foi nomeado Comissário do Povo para os Assuntos Militares e Navais e chefe do Supremo Conselho Militar. Era o comandante do Exército Vermelho e respondia apenas perante a direção do Partido Comunista.
A guerra era agora civil. Tornava-se indispensável transformar os pequenos destacamentos independentes numa grande e disciplinada máquina militar, necessariamente não partidária. Trótski introduziu o recrutamento forçado e aceitou a colaboração de oficiais czaristas, vistos por boa parte dos bolcheviques como traidores potenciais. Os efetivos do Exército Vermelho subiram de menos de 300.000 em maio de 1918 para cerca de um milhão em outubro do mesmo ano. Foram introduzidos nas unidades militares os comissários políticos, que deveriam assegurar a lealdade dos antigos oficias do exército imperial.
Trótski esforçou-se por implementar no Exército Vermelho a seleção dos comandantes pelo mérito. Promoveu a postos importantes antigos oficiais czaristas que demonstraram a sua competência em combate e não se coibiu de mandar fuzilar uns tantos militantes comunistas que se acobardaram frente ao inimigo. Entregou as decisões puramente militares aos oficiais profissionais. Era, de facto, o principal comissário político do Exército Vermelho.
Os pontos de vista de Trótski foram muito contestados, inclusive por Estaline e Lenine, mas o Exército Vermelho continuava a crescer e, já com cerca de três milhões de soldados, enfrentou com sucesso 16 exércitos inimigos.
Durante o ano de 1921, os partidários de Lenine e Trótski equilibravam-se no Politburo. No 10º congresso do Partido, em maio de 1921, a balança de poder inclinou-se para o lado de Lenine.


Entretanto, a saúde de Vladimir Ilitch Ulianov deteriorou-se. O líder da revolução russa sofreu três acidentes vasculares cerebrais. O primeiro deixou-o com paralisia dos membros direitos e dificuldades na fala. Recuperou parcialmente. Em dezembro de 1922, o segundo agravou-lhe a hemiparesia e forçou-o a abandonar a atividade política. O terceiro acidente vascular ocorreu em março de 1923. Lenine não voltaria a falar. Permaneceu acamado até à sua morte, em 21 de janeiro de 1924.
Com Lenine incapacitado, Estaline, Zinoviev e Kamenev constituíram um triunvirato destinado a impedir que Lev Trótski, o segundo personagem mais importante do Partido e o herdeiro presumível de Lenine, tomasse conta do Poder.


                                   Trótski, Lenine e Kamenev
Os tempos tinham mudado e muitos bolcheviques pensavam que a época da turbulência revolucionária representado por Trótski chegara ao fim, sendo necessário estabilizar a Rússia. Por outro lado, Estaline aproveitou-se habilmente do seu cargo de secretário-geral para dominar o aparelho do Partido. Nomeava os funcionários locais, o que lhe permitia controlar a maioria dos delegados ao Congresso, fazendo eleger para o Comité Central homens da sua confiança.



O novo líder livrou-se da concorrência logo que pôde. Os seus aliados Zinoviev e Kamenev cada vez tinham menos peso político. Trótski, o mais brilhante dos seus adversários, foi afastado do Poder.
No final de 1922, Estaline resolveu fundir as repúblicas soviéticas emergentes num estado federal, a União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, claramente dominada pela Rússia.


A economia soviética atravessava dificuldades consideráveis e rebentavam greves um pouco por toda a parte. Trótski atribuía essas dificuldades à falta de democracia entre os bolcheviques. Segundo ele, assistia-se a uma divisão progressiva entre uma hierarquia de funcionários, escolhidos de cima, e as massas populares. As discussões livres dentro do Partido tinham praticamente desaparecido. Eram os funcionários que escolhiam os delegados às conferências e aos congressos.
Era tarde para modificar a situação. A troika controlava o Partido Comunista da União Soviética, através do secretariado-geral José Estaline, e o jornal Pravda por intermédio do seu editor Bukharin. O Politburo já nada mandava. Todas as decisões importantes eram tomadas pela troika. O controle de Trótski sobre os militares ia também sendo minado.
Desenhava-se uma rotura definitiva, também no campo teórico. Trótski continuava a pensar que a União Soviética não se poderia transformar num verdadeiro estado socialista antes de ocorrer uma revolução mundial. Com os pés bem assentes no solo russo, Estaline defendia a construção inicial do socialismo num único país.


Trótski tornara-se um inimigo a abater e era alvo de ataques políticos sucessivos de parte dos aliados de José Estaline. Em Janeiro de 1925 foi obrigado a demitir-se das suas funções de Comissário do Povo para as questões do Exército e da Marinha e de Chefe do Conselho Revolucionário Militar. O seu velho inimigo Zinoviev pediu mesmo a sua expulsão do Partido Comunista. Estaline resolveu desempenhar um papel de moderado e opôs-se a essa medida extrema. Trótski conservou o seu lugar no Politburo, mas já não tinha qualquer poder de decisão.
1925 foi um ano difícil para Leon Trótski, mas não o foi menos para o seu cunhado e adversário Kamenev e para  Zinoviev. O triunvirato que haviam formado com Estaline chegara ao fim. José Estaline tornara-se suficientemente poderoso para se poder desembaraçar dos aliados. Em outubro de 1927, Trótski e Zinoviev foram expulsos do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética. Kamenev teve o mesmo destino em dezembro.
Trótski foi exilado para o Kazaquistão a 31 de Janeiro de 1928. No começo do ano seguinte, seria deportado.
Partiu acompanhado pela esposa, Natália Sedova e pelo filho Lev Sedov. O homem que chefiara o assalto ao Palácio de Inverno do czar Nicolau e que defendera militarmente a revolução comunista contra inimigos poderosos não voltaria a pôr os pés no solo pátrio. Passou quatro anos na Turquia, dois em França e outros dois na Noruega. O presidente mexicano Lázaro Cardenas acabou por o acolher no México.


                              Frida Kahlo e Diego Rivera
Leon Trótski hospedou-se em casa dos pintores Diego Rivera e Frida Kahlo em Coyoacán, na cidade do México. Frida era uma grande pintora, mas sofria de problemas graves na coluna e não parecia mulher atraente. Tal não terá sido o ponto de vista do revolucionário russo, que teve um curto romance com ela.



Incompatibilizado com Rivera, Trótski mudou-se para uma casa situada no mesmo bairro. Por essa altura, sofria de hipertensão arterial e receava vir a ter um acidente vascular cerebral. Terá mesmo pensado no suicídio.


Os problemas de saúde não o impediram de pensar e de escrever. Publicou diversos livros durante esse período. Contam-se entre eles a «História da Revolução Russa» e «A Revolução Traída».
 Longe do seu país, Trótski não deixou de fazer política. Durante algum tempo, receara dividir o movimento comunista internacional e recusara apadrinhar organizações que competissem com a Terceira Internacional. Em 1933, porém, quando os nazis tomaram o poder na Alemanha, mudou de ideias e reuniu os seus apoiantes, para projectar uma alternativa ao Comintern estalinista. A Quarta Internacional foi fundada em 1938, numa reunião em que participaram 25 delegados de 11 países. Pretendia ser uma alternativa revolucionária e internacionalista ao estalinismo.
Leon Trótski opôs-se ao pacto germano-soviético de não-agressão assinado por Molotov e Ribbentrop oito dias antes de rebentar a II Grande Guerra Mundial. O pacto riscava a Polónia do mapa e dividia os países bálticos e a Finlândia entre as duas potências signatárias. Durou até junho de 1941, quando as tropas nazis invadiram a União Soviética, sem aviso prévio.
As ideias políticas de Leon Trótski constituem a base do trotsquismo, uma corrente ainda importante no marxismo contemporâneo. Trótski rejeitou a teoria da implantação do socialismo num único país e advogou a necessidade de uma «revolução permanente». Afirmou que uma nação socialista não poderia viver sem democracia e opôs-se ao totalitarismo estalinista. O conceito de «revolução permanente», habitualmente associado ao trotsquismo, é, contudo, mais antigo. Foi formulado por Marx e Engels, no rescaldo da revolução de 1948. 


                              Frederic Engels e Karl Marx
Entretanto, sob o domínio de Estaline, a Rússia entrava numa fase negra. Em Agosto de 1936, Trótski foi julgado, juntamente com Zinoviev, Kamenev e catorze outros velhos bolcheviques. Os acusados presentes confessaram ter conspirado com Trótski para assassinar Estaline. Quem caía nas mãos da polícia política estalinista confessava tudo o que fosse conveniente. Todos os réus, incluindo Leon Trótski, foram condenados à morte.
Estaline não perdoava aos seus adversários. Trótski era o mais notório de todos. A repressão estalinista assumiu foros de demência. Filhos, genros, noras, netos, e outros parentes de Trótski foram desaparecendo em purgas sucessivas na década de 30. Escapou apenas um neto, que se juntara ao avô no México.
 Em maio de 1940, a casa de Trótski foi assaltada e o seu neto foi ferido a tiro num pé. Um dos guarda-costas foi sequestrado e assassinado. O velho líder bolchevique escapou ileso.
O falhanço deste atentado enfureceu José Stalin. Pavel Sudoplatov, que na altura era subdiretor do Departamento Estrangeiro da NKVD (antecessora da KGB), relata, no seu livro “Operações Especiais”, as circunstâncias em que foi decidida a eliminação física de Trótski:
 «Estaline franziu o cenho. Tinha o cachimbo na mão, apagado, embora cheio de tabaco. Em seguida, com o jornal do dia no colo, acendeu um fósforo, aproximou o cinzeiro, num gesto que aqueles que o conheciam bem antevia uma decisão crucial. Beria opinou que o Serviço de Inteligência Estrangeiro deveria mudar as suas tradicionais prioridades às vésperas de uma guerra de grandes proporções que se avizinhava. Trótski significava uma séria ameaça para os preparativos de guerra da URSS. Beria sugeriu que me pusessem no comando de todas as operações anti-trotskistas da NKVD, a fim de infligir o golpe decisivo no movimento trotskista. Trótski, era o «pior inimigo do povo». No movimento trotskista não há figuras importantes além do próprio Trótski, interrompeu Estaline. Eliminado Trótski, a ameaça desaparece.
Estaline pôs-se de pé e empertigou-se. Em tom baixo, escandindo as palavras, ordenou: Trótski deve ser eliminado antes que termine o ano e a guerra ecluda. E prosseguiu: como prova a experiência da Espanha, sem a eliminação de Trótski não podemos confiar nos aliados da Internacional Comunista, caso os imperialistas ataquem a União Soviética. Terão grandes problemas para levar a cabo sua tarefa de desestabilizar a retaguarda dos inimigos mediante sabotagens e guerrilhas se tiverem de fazer frente à traidora infiltração dos trotskistas em suas fileiras...»
A 20 de Agosto de 1940, Trótski foi atacado em casa pelo agente soviético Jaime Ramón Mercader del Río Hernández, que usava também os nomes de Jacques Monard ou de Frank Jacson.
 Ramón Mercader nasceu em Barcelona mas passou boa parte da juventude em França. Ainda jovem, nos meados dos anos 30, colaborou com organizações comunistas espanholas. Chegou a estar preso durante algum tempo.


                                          Ramón Mercader
Pouco antes do começo da guerra civil espanhola, recebeu treino de guerrilha em Moscovo. No final, foi nomeado agente no exterior do Comissariado do Povo para Assuntos Internos da URSS (NKVD).
Apresentou-se a Trótski com o nome de Frank Jacson e ganhou a sua confiança ao referir as suas relações com o movimento da Quarta Internacional na França e nos Estados Unidos.
Na tarde de 20 de Agosto apresentou-se na casa de Coyoacán e encontrou Trótski no quintal. Pediu-lhe a opinião sobre um artigo que acabara de escrever. Entraram para o escritório de Trótski. No decurso do julgamento, o assassino descreveu o crime:
 «Coloquei a minha capa de chuva na mesa, de forma que fosse capaz de tirar o “piolet” (pequena picareta de alpinismo) que estava dentro do bolso. Quando Trotski começou a ler meu artigo, retirei o “piolet” e, com os olhos fechados, dei-lhe um golpe na cabeça. Trótski emitiu um grito que eu nunca esquecerei. Um longo aaaa, interminavelmente longo, eu penso que ainda ecoa em meu cérebro. Depois, saltou em cima de mim e mordeu-me na mão. Ainda tenho as marcas de seus dentes. Empurrei-o e ele caiu no chão. Então, levantou-se e saiu do escritório a cambalear.»



Ao ouvir o ruído, os guarda-costas de Trótski precipitam-se para a sala e quase mataram Mercader. A vítima travou-os. Era preciso interrogar aquele homem. Trótski foi levado para um hospital e ainda foi operado. Faleceu no dia seguinte.
Entregue às autoridades mexicanas, Mercader recusou revelar a sua identidade verdadeira. Foi condenado a 20 anos de prisão. Nunca referiu as suas ligações à NKVD.
Cumpriu a totalidade da pena. No final, foi recebido em Cuba por Fidel Castro. No ano seguinte, deslocou-se à URSS e recebeu a medalha de de Herói da União Soviética, uma das condecorações mais importantes do país. Regressou a Havana, onde acabaria por morrer. Está sepultado em Moscovo.
Não me surpreende que o regime russo tenha gratificado Ramón Mercader pelo facto de o seu silêncio o deixar à margem dum assassinato comprometedor em território americano. Admira-me, sim, a postura castrista. Fico a pensar que, para o regime saído da revolução cubana, o herói da revolução russa de outubro de 1917 era também um traidor à causa do comunismo internacional.


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