DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 31 de março de 2015

A CIDADE PERDIDA DE CALIÁBRIA






Há cidades mortas por esse mundo fora. Terras onde homens e mulheres trabalharam, construíram as moradas, criaram os filhos, repousaram, fizeram versos e sonharam. Povoações em que se falava mal e bem dos vizinhos e dos dirigentes, se semeava o pão, se plantava a vinha e se colhia a castanha, em que se adoecia, se vivia melhor ou pior e em que os mortos eram enterrados sem sobressaltos. Quase todos esses burgos possuíam uma igreja, ou mais. Rezava-se a deuses diversos, consoante a região e a era.
Há muitas urbes assim. Estiolaram. Umas caíram pelo fogo e outras pela espada. Em alguns casos, as condições climáticas modificaram-se. Choveu a mais ou a menos e as populações deslocaram-se em busca de terrenos mais férteis. Uma parte delas não deixou vestígios e já ninguém lhes conhece os locais.


Vou falar duma cidade destas. Chamou-se Caliábria e existiu na margem sul do rio Douro, entre Foz Coa e a Barca d`Alva, no espaço que medeia entre as desembocaduras dos rios Águeda e Coa. A sua localização exata não é conhecida. Há crónicas medievais que a situam na atual Montánchez, hipótese que se afigura improvável. Outros autores apontam para Fermoselle (na Província de Zamora), para Coura (perto de Viseu), para os arredores de Escalhão e para Almendra. Os escritos mais recentes (a partir do século XVII) tendem a aceitar a correspondência entre Caliábria e o Monte Calabre, situado dentro do termo da freguesia de Almendra, junto ao Rio Douro.


Caliábria desenvolveu-se durante o império visigodo. Foi sede de diocese. Os seus bispos estiveram presentes nos concílios de Toledo entre os anos 633 e 693. O último bispo, São Zenão, terá sido ceifado pelas cimitarras muçulmanas em 717, juntamente com outros prelados da região. Findaram então as referências históricas à cidade visigoda. Muitos anos mais tarde, no tempo de Fernando II, o título de «episcopus Calabriensis» passou para a catedral de Ciudad Rodrigo.


Curiosamente, D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa falecido em 2014, foi bispo titular de Caliábria, o que o levou a interessar-se pela sua história. Escreveu um artigo que intitulou «A Cidade Romana e a diocese de Caliábria» e visitou o local. Eis a sua descrição:
«Encetámos a longa escalada de duas horas, tribulações de um bispo do século XX que pretende tomar posse duma diocese do século VII. Encontrámos, no alto do monte, hoje coberto de amendoeiras, uma espécie de planalto, em forma de ligeiro vale, onde se situa uma fonte, sendo a área murada por uma muralha, em pedra xistosa, em parte à superfície do terreno, aqui e acolá elevando-se ainda cerca de um metro. Tem a seus pés o rio Douro, no ângulo que forma com a ribeira de Aguiar, seu afluente. Pedras dispersas, explica-nos um pastor, são o que resta da antiga igreja. Cantámos vésperas, sentados na muralha. Eis como, sem ter participado em nenhum dos concílios de Toledo me encontrei como último bispo conhecido de Caliábria».
Hoje, continua a observar-se no local o monte Calabre, onde se diz ter existido a urbe. Nada o distingue dos cabeços vizinhos. Nas encostas viradas a sul, as videiras plantadas em socalco estendem-se quase até ao cume. Produzem o «vinho fino», que muda de nome no Porto.


 Na primeira metade do sec. XVII ainda se poderiam ali observar, para além das ruínas da fortificação, inscrições sepulcrais. A muralha era de xisto, pedra abundante na região. O granito que também ali se encontra foi trazido doutros lugares. Atualmente, em Almendra os mais velhos continuam a falar das Portas do Sol, que ficariam junto a uma nascente, próxima da capela de Nª Senhora do Campo. 
    A sul, corre a ribeira do Castelo que vai dar à Ribeira de Aguiar e, por esta, ao rio Douro. Há várzeas férteis nas terras baixas por onde passa. A nordeste, junto ao Douro, há solos planos aráveis. Não são extensos. A cidade não poderia ter sido muito grande. Não havia onde semear pão para sustentar muitas bocas. Nas colinas vizinhas há olivais e amendoais.

Fontes:
Cosme, S. Entre o Coa e o Águeda. Povoamento nas épocas romana e alto-medieval. Dissertação de mestrado em Arqueologia. Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2002.
Policarpo, J.C. A cidade romana e a diocese de Caliábria. Em: O tratado de Alcanices e a importância histórica das terras de Riba Coa. Universidade Católica Editora,
Vários. Civitas Calabriga (Monte do Castelo ou Calabre, Almendra). Portugal Romano.com, distrito da Guarda.  
Vários. Suevos e visigodos em Riba Coa. www.cm-fcr.pt/concelho/Documentos/suevos.pdf

Fotografias: Internet



Sem comentários:

Enviar um comentário