MORREU
HERBERTO HELDER
Os
meus amigos hão de lembrar o que eu costumava dizer quando se falava da poesia
de alguns líderes nacionalistas das antigas colónias portuguesas, como
Agostinho Neto ou Amílcar Cabral:
−
Valem pela autenticidade, pelos testemunhos e pelo amor às suas terras, mas não
são grandes poetas.
Perguntavam,
ora contestadores, ora apenas curiosos:
−
Então, para ti, quais são os grandes poetas de língua portuguesa desde Fernando
Pessoa?
Eu
respondia, invariavelmente:
−Herberto
Helder e Eugénio de Andrade.
Que
me perdoem os brasileiros (se puderem) pois desconheço a poesia recente do
Brasil.
Nunca
tentei estabelecer comparações entre um e outro, nem senti necessidade de o
fazer. Cada um tem personalidade muito própria. Os deuses emprestaram a ambos o
dom de dedilhar as palavras como quem acaricia as cordas duma guitarra para dar voz
às canções. Falei em emprestar porque, no final, os deuses reclamam sempre o que
lhes pertence.
Eugénio
de Andrade faleceu em 2005. Deixou-nos, entre outros, lindíssimos poemas de
amor homossexual. Não foi o primeiro a fazê-lo, na grande poesia portuguesa.
Basta lembrar Antínoo, em que
Fernando Pessoa imagina o imperador Adriano a chorar a morte do seu escravo e
amante.
Não
falarei hoje mais de Eugénio de Andrade. É dia de homenagear Herberto Helder, um homem diferente.
A
última versão da sua obra «completa» Ofício
Cantante (as aspas estão aí porque a obra provavelmente terá terminado ontem)
foi um dos meus poucos livros de cabeceira durante os últimos meses. Sou
persistente e li-o todo, sem saltar poemas. São pouco mais de seiscentas
páginas do melhor que nos deu a escrita portuguesa no último meio século. Confesso
que o fiz também por dever de ofício. Sou dos que acreditam que a leitura
atenta dos poetas grandes ajuda a limar as arestas da escrita e permite
suavizar a prosa, tornando-a mais agradável ao ouvido. Como é natural, gostei
mais de uns poemas do que doutros.
Confesso
ainda que não entendi tudo. Há no fundo dos espíritos sensações imperscrutáveis.
Depois, julgo saber que as almas dos poetas se deixam também moldar pela força das palavras.
Não
sou crítico literário. Embora aprecie poesia e tenha escrito uma qualidade
limitada de versos sofríveis, não me posso chamar poeta. As minhas opiniões não
têm qualquer autoridade técnica ou cultural. Limito-me a expressar o que penso
e sinto.
Julgo
que, de certo modo, Herberto Helder viveu quase como quis. Depois de falhar as experiências
universitárias, andou pelo mundo e desempenhou vários ofícios. Ganhou fama de misantropo, mas não se furtou
ao convívio dos amigos nem dos poetas aprendizes. Fez questão de evitar, a todo
o custo, as luzes da ribalta. Não dava entrevistas nem se deixava fotografar.
Mesmo atitudes quase provocatórias, como a de recusar o Prémio Pessoa, com um
valor pecuniário não displicente para um poeta bem longe de ser rico, o
expuseram demasiado à atenção dos media.
Não
seria curial falar de um poeta sem apresentar alguns versos dele. Acontece que
Herberto Helder é difícil de citar. Não se encontram facilmente na sua escrita
frases lapidares. Os versos enredam-se uns nos outros e valem por esse
encadear. Escolhi parte de O poema,
do livro A colher na boca. Poderia
ter feito muitas outras opções.
O
poeta morreu bem, de repente e na própria cama. Morreu sem mestre.
Fecundo mês da oferta
onde a invenção ilumina
a harpa e a loucura
desperta a pura espada
em pleno sangue. Ó
vasto,
amargo e límpido mês
interior onde a graça
se toca do fogo e o
corpo se torna o cândido
e longo varão de
música. Escada de seiva
entre arbustos de
estrelas
e cubos de sal
perpetuamente ardendo.
− Por ti, mês feliz de
confusão e génio,
eu levanto minha húmida
boca
até ao ar e ao vinho,
levanto
minha obscura pedra
por vias de tormento
e instinto até
ao barro vermelho do
céu, ao espasmo
violento e sagrado das
palavras.
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