NECROFILIA NA LITERATURA PORTUGUESA
CAMILO CASTELO BRANCO
No caso de Camilo, chegou a tomar-se o texto pelo
autor e o nosso grande escritor nunca se livrou de todo da fama de necrófilo.
A
ideia de necrofilia foi, a meu ver e no de outros, forjada pelo próprio
escritor quando publicou na «Aurora do Lima», em Viana, a narrativa «Impressão
indelével», que seria incluída, no mesmo ano no volume «Duas horas de leitura».
Voltei a ler três contos seus com o agrado de sempre. Camilo escreve tão bem
que até as suas obras menores se leem com prazer.
“Impressão
indelével” não foi a primeira história em que Camilo recorreu a associações
macabras para impressionar os leitores.
Neste
livro publicado recentemente os editores juntaram dois contos e uma pequena
novela, escritos em alturas diferentes. “O esqueleto” data de 1848, enquanto “A
caveira” é de 1855 e a “Impressão indelével” remonta a 1857. Entram neste
pequeno volume dois esqueletos completos e uma caveira avulsa. Nas duas últimas
narrativas, os protagonistas são enterrados juntamente com as ossadas das
mulheres amadas. Mesmo sem lhes juntar na história de Fanny Owen, já é
necrofilia de sobra…
Vou
concentrar-me na “Impressão indelével” porque nela o escritor descreve, na
primeira pessoa, a exumação do cadáver de Maria do Adro e fá-lo com tal
realismo que até o próprio sobrinho António de Azevedo Castelo Branco, levou a
história a sério. António de Azevedo declarou, em 1890, ao biógrafo do tio
materno, Alberto Pimentel, que, em casa do padre António de Azevedo, seu tio
paterno, estiveram, durante anos, os ossos de Maria, sem que o inocente
sacerdote disso desse conta.
Esta é a casa do padre António, cunhado de Carolina, a irmã de Camilo. O escritor morou ali durante vários meses, na sua adolescência.
A
suposta exumação foi relativamente precoce (um mês após o óbito) e não consta que padre
António sofresse de anósmia.
Por
outro lado, a paixão platónica que o nosso Camilo terá tido por Margarida Maria
Dias, a Maria do Adro, coincide, no tempo, com o seu casamento com a Joaquina
de Friúme, de quem viria a ter uma criança. O futuro escritor abandonou mãe e
filha. Ambas faleceram cedo.
Maria
do Adro era filha duma viúva pobre e morreu de tuberculose. Morou nesta casa,
também em Vilarinho da Samardã.
Maria
do Adro era cinco anos mais velha que Camilo, que casou aos quinze ou dezasseis.
De forma para mim inexplicável, no conto, a iniciativa da profanação do cadáver
parte do cunhado médico, Francisco José de Azevedo, que perguntou a Camilo, no
dia seguinte ao seu regresso e ao recebimento da notícia da morte da Maria do
Adro:
−Sabe
alguma coisa de anatomia?
−Eu
fiz um exame.
−Atreve-se
a ajudar-me a preparar um esqueleto?
−Poderei
ajudá-lo.
−Então
guarde segredo, porque é preciso que meu mano padre o não saiba. Temos de ir à
igreja desenterrar o cadáver duma rapariga que morreu tísica.
−A
Maria do Adro? – atalhei eu com estranha vivacidade.
Lembre-se
que Camilo chegou a estudar Medicina e obteve aprovação em duas cadeiras, uma
das quais foi Anatomia.
Para
que quereria o Doutor Azevedo um cadáver em putrefação? O autor não se dá ao
trabalho de explicar as intenções do cunhado.
O
nosso grande Egas Moniz foi um dos que enfiaram o barrete, abordando a suposta
necrofilia de Camilo na sua interessante obra «A vida Sexual». Eu tenho um
exemplar desse livro, mas não o consegui encontrar. Tive de procurar outras
fontes.
Ainda
era o tempo em que a patologia psiquiátrica era encarada com preocupações
morais. Os médicos faziam juízos de valor ético sobre as perturbações mentais
dos doentes. Escreveu Moniz:
“
A necrofilia é a mais repugnante de todas as matérias que aviltam a vida sexual
do homem”. Continuou adiante, referindo-se a Camilo:
“O que apenas desejei
patentear é que, pelo exame das provas que as biografias publicadas nos
fornecem (baseava-se essencialmente no trabalho de Alberto Pimentel, “O romance
do romancista”) não podemos deixar a suspeita de que Camilo fosse um
necrófilo”. Dito de outro modo: absolvia-o por falta de provas, sem deixar de
sugerir aspetos reprováveis da vivência de Camilo. Não seria propriamente um
necrófilo, mas…
Em
1925, comemorou-se o centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. As
comemorações incluíram a inauguração de um busto do escritor, a atribuição do
seu nome a uma rua da cidade do Porto e a publicação de uma obra intitulada “In
memoriam de Camilo”, com contributos de muitas personalidades notáveis da vida
pública e intelectual do país. Egas Moniz deu também colaborou na
coletânea de textos. Foi pouco feliz na escolha do título do seu trabalho. Intitulou-o “A necrofilia
em Camilo”.
De
facto, no texto desmente o cabeçalho. Apesar de continuar a acreditar o
homenageado desenterrara o corpo de Maria do Adro – “Não há dúvida que Camilo
assistiu com seu cunhado à exumação do cadáver da sua antiga namorada” − Egas
Moniz conclui o seu artigo afirmando que ”...Camilo não só nunca foi um anormal
genésico, mas não mostra, por este relato, o mais leve pendor para o campo das
perversões sexuais”. O comportamento do escritor teria “roçado pelo normal”.
A
meu ver e no de Alexandre Cabral, o nosso Prémio Nobel da Medicina não tem
razão neste caso.
Não
foi, contudo, o único a pensar assim. António Sardinha, ideólogo do “fundamentalismo
lusitano”, bem distante politicamente de Egas Moniz, também colaborou no “In
memoriam de Camilo”. Aceitou a anormalidade de Camilo e atribuiu-a à sua
ascendência hebraica.
Já
em 1965, o médico João de Araújo Correia no prefácio ao livro “Camilo em
Ribeira de Pena”, do também médico Mário de Menezes, escreveu: “Egas Moniz não
andou longe da verdade, considerando necrófilo o extravagante Camilo”.
Tanto
quanto sei, deixaram-se levar pelo génio do escritor. Até Egas Moniz, de cujo
espírito arguto todos nos orgulhamos, se deixou enganar.
Nas
suas novelas, Camilo recorria a tudo o que pudesse cativar o interesse dos
leitores. Nada há, no seu percurso de vida, que aponte para a existência de
parafilias. Como os psiquiatras sabem, tais comportamentos repetem-se.
Em
tempos, eu pus estas palavras na boca de Camilo: “É verdade, ou não, o que
escrevo? Umas vezes é. Noutras, passa a ser. Um texto, ao verter-se no papel,
ganha existência própria; faz-se real”.
Ao
molhar o aparo no tinteiro, ainda sou eu; mudo no traçar das primeiras frases.
Transformo-me; faço-me personagem e moro nos capítulos do romance; exponho a
alma em cada artigo de gazeta.
Sou
quem escreve. Sou também o que está escrito.
Disse
Camilo ao seu amigo Freitas Fortuna, que lhe disponibilizou o jazigo de família
para o último repouso:
Caveiras,
só tive uma perto de mim quando estudava anatomia.
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