O PLÁGIO DE EÇA
Publiquei o essencial deste artigo há três dezenas de anos,
no Jornal de Letras. Pareceu-me interessante arejá-lo agora no «decaedela».
Não enfileirando com os que consideram Eça de Queiroz o maior
prosador português de todos os tempos, respeitei sempre a sua escrita e
procurei aprender com ela. No entanto, não existem homens perfeitos. «Não há
bela sem senão». «No melhor pano cai a nódoa».
Há 35 anos, encontrava-me em Barcelona a treinar microcirurgia.
Numa tarde fria de março, fui ao cinema do bairro. Passava no cinema do bairro,
junto ao Paseo de Gracia, uma fita de Pasolini, «Os Contos de Canterbury», Reconheci facilmente, numa das histórias, o conto «O Tesouro», atribuído a Eça de Queiroz.
Decidi esmiuçar o assunto. Li duas biografias de Eça e tomei
de empréstimo, da minha amiga Júlia Marvão, «The Canterbury Tales», de Chaucer.
Era uma edição da Penguin e apresentava os versos adaptados ao inglês moderno.
«The Pardoner´s Tale» ocupava as páginas 260 a 272. «O Tesouro» correspondia
mais diretamente às páginas 269 a 271.
Eça fez uma introdução diferente e abandonou a parábola da
Morte procurada tolamente pela soberba da juventude. Manteve, no entanto, o
enredo básico. A pequena diferença na sucessão dos crimes nada mudava, no
essencial.
Posta de lado a hipótese de coincidência, inverosímil para
quem comparasse as histórias, poderia admitir-se a origem comum dos textos,
perdida algures no tempo e no pó das estantes, a meio do antigo património
cultural que a circulação dos livros e das fronteiras terá feito europeu. Na
realidade, a paternidade dos contos não parece sequer ter sido reclamada
demasiado vivamente por Chaucer. No final do século XIV, a originalidade era
menos apreciada nos escritos que o estilo que os vestia. «Não era considerada
função de um contador inventar as histórias, mas apresentá-las e embelezá-las
com todas as artes da retórica, com a finalidade de entreter e instruir»
(Nevill Coghill, na edição que consultei dos Contos da Cantuária). Os contos
narrados pelos peregrinos de Chaucer provinham de toda a Europa e mesmo do
Oriente. Uma das poucas narrativas atribuídas ao próprio Chaucer é a do
«Canon´s Yeoman».
Geoffrey Chaucer, homem da Renascença e leitor insaciável,
conhecia bem a literatura latina, francesa, anglo-normanda e italiana e teve a
oportunidade de contactar com a galaico-lusitana. O escritor era protegido de
John de Gaunt, duque de Lencastre, ligado às duas últimas guerras do reinado do
nosso D. Fernando e à guerra da independência que se lhe seguiu.
Não acompanhou o seu protetor quando este, depois de invadir e tomar a Galiza em 1386, se avistou com D. João I na fronteira norte de Portugal. Não assistiu assim ao primeiro encontro do novo rei de Portugal com D. Filipa, filha do duque, em Poço de Mouro, entre Melgaço e Monção.
Não acompanhou o seu protetor quando este, depois de invadir e tomar a Galiza em 1386, se avistou com D. João I na fronteira norte de Portugal. Não assistiu assim ao primeiro encontro do novo rei de Portugal com D. Filipa, filha do duque, em Poço de Mouro, entre Melgaço e Monção.
Cônsul de Portugal em Inglaterra durante 14 anos, Eça teve
oportunidades de sobra para conhecer a literatura inglesa. Terá lido Chaucer e
escrito uma versão de um dos seus contos. É de admitir que, pressionado pelos
editores e carente de dinheiro, se tenha servido de um texto alheio sem
mencionar devidamente a sua fonte.
As dificuldades económicas que acompanharam Eça ao longo da
vida são bem conhecidas. Os proventos da escrita contribuíam minoritariamente
para o seu orçamento. Ainda assim, em 1878, em Bristol, somavam 29 libras
semanais num total de 80 (carta a Ramalho Ortigão) e obrigavam à feitura mensal
de uma novela para a Chardron, além da correspondência para «A Actualidade».
Por essa altura, um irmão de Ramalho, radicado no Brasil,
sugeriu a Eça de Queiroz colaboração para «A Gazeta de Notícias», do Rio de
Janeiro. «O Tesouro» foi publicado na Gazeta em 1884. Ao tempo, Eça era cônsul em
Paris e escrevia «A ilustre casa de Ramires».
Já lá vão 130 anos. Chaucer jaz na Abadia de Westminster
desde 1400. Pouco se tem falado neste assunto. É fácil imaginar o embaraço dos
queirosianos devotos que descobriram o pecadilho do grande mestre.
Esse indiscreto Pasolini…
Imagens: Internet
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