A MINHA AVÓ
Toda a gente tem, ou teve duas avós. A única exceção possível
é o nascimento duma relação incestuosa entre pai e mãe. Todavia, “a minha avó”
é a avó Amélia. Da avó Delfina, pouco lembro. Recordo apenas que me oferecia
rebuçados que ela própria fazia.
Tanto quanto se sabe, na minha família os homens não eram parvos.
Casavam-se, relativamente tarde, com raparigas novas. Esse facto aliava-se à conhecida
longevidade feminina para inscrever viúvas no rol dos antepassados. Conheci as duas avós, uma bisavó e uma tia-avó. Dos avôs, sei apenas
o que me contaram. Morreram antes do meu nascimento.
A minha avó Amélia chamava-se Elvira. Lá estou eu a brincar…
O seu nome completo era Elvira Amélia Folgado. Fiquei com o “Sancho” do meu avô
João. Provavelmente, “Folgado” assentava-me melhor.
Os meus quatro irmãos mais velhos (dois homens e duas
mulheres, felizmente vivos e relativamente saudáveis) têm o meu pai por figura
tutelar e até totémica. Talvez por o ter deixado cedo (17 anos) nas alturas do
Lubango, a minha grande referência familiar é a avó Amélia.
É dela que falo mais aos meus netos. Há de persistir na
memória deles muito tempo após o meu passamento. É que, digam o que disserem os
crentes, não existe outra vida além desta e um homem morre de vez quando
desaparece da face da terra a última pessoa que guarda recordações (boas ou
más) dele.
Dizem que a minha avó, na juventude, era bela. Dela (e do avô
do outro lado) provêm os olhos claros que predominam na minha descendência. Falava
do marido com carinho mas, quando o padre lhe perguntou esse era de sua vontade
casar com João Sancho, respondeu com um rotundo “não!”
Lá lhe deram a volta. Contava-me, três quartos de século mais tarde:
Lá lhe deram a volta. Contava-me, três quartos de século mais tarde:
Reaprendi a conhecê-la quando voltei para Portugal. Passava
em Almendra as férias de verão. Bem gostaria de estar umas semanas numa praia,
mas a minha bolsa de estudos não dava para isso.
Quando a minha mãe morreu, recebeu-me ainda com mais carinho.
Declarou:
− Agora, sou duas vezes tua mãe!
Por essa altura, a avó Amélia já entrara havia algum tempo na
nona década da vida. Via mal, estava meio surda e deslocava-se com dificuldade,
inclinada para a frente.
Eu achava que já era homem. Quando me julgava adormecido, ela
deslocava-se até ao meu quarto (“toc, toc, toc”) e ajeitava-me os cobertores.
Sabia bem…
Pelos vinte anos, arranjei uma namorada na Queima das Fitas.
Reprovei a uma cadeira, pela única vez na minha vida e perdi o ano. A avó não
me fez críticas. Deixou-me andar por ali durante três semanas, como se nada se
tivesse passado. Ao fim desse tempo, chamou-me e disse:
− Agora, toca a estudar!
Eu era um aluno razoável e ela tinha certo orgulho em mim.
Quando me licenciei, ficou contente.
− Este ano, em Almendra formaram-se três doutores, filhos de três doutores…
Sabe-se o que valem os títulos, se não tiverem conteúdo que
os alimente. Jorge Amado que o diga…
A minha avó era uma pessoa resistente e viveu mais tempo do
que todos os amigos e inimigos. Já perto
do fim da vida, incompatibilizou-se com um vizinho, por causa da divisão dum
pequeno terreno a que nenhum dos dois tinha direito. Insultava-o:
− Aquele miúdo! Aquele fedelho!
O fedelho era o homem mais velho da terra e ia nos 93 anos. A
avó Amélia nascera três anos antes.
Nunca ia ao médico e tinha a aguardente por única mezinha.
Aquilo servia para tudo: dor de dentes, reumatismo, mal de estômago… Não
abusava da medicação, pois o equivalente a uma garrafa de cerveja dava-lhe para
todo o ano.
Com 98 anos feitos, sofreu um acidente vascular cerebral.
Ficou retida na cama e demenciada. Era o tempo dos emigrantes, que vinham
passar férias a casa e a que chamavam “franceses”. Integravam os pesadelos da
avó.
Quando eu voltava a Almendra, repudiava-me:
−
Quem é o senhor? Que está aqui a fazer?
−
Avó! Eu sou o Toneca… (era assim que me chamavam e ainda me chamam os meus
irmãos).
−
Não é nada! O senhor é um ladrão, um francês!
O
estado de consciência flutuava:
−
Mas se fosse o Toneca, quantos beijos e quantos abraços eu lhe daria…
Chorei,
vezes sem conta, ao contar este episódio. Serve-me de exemplo para afirmar que,
em certos casos, o amor dura mais do que a razão.
Esta
é uma das histórias que, possivelmente, os meus netos irão passar aos netos
deles.
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