Este é um dos "Bilhetes" que George Agostinho da Silva fez publicar no jornal "África" entre Julho e Setembro de 1990. Escolhi-o por falar do tempo em que o filósofo viveu em Barca d`Alva.
A Barca é a última estação do caminho de ferro da Linha do Douro. Estudei em Coimbra, na década de 60, e passava a Páscoa e as férias grandes em casa da minha avó, em Almendra, a estação penúltima. Viajava sempre de comboio. Barca d`Alva ficava para além e ganhava o encanto do desconhecido. Lembro-me de pensar e de dizer que tinha o nome mais bonito das terras de Portugal. Visitei-a, pela primeira vez, muitos anos depois.
Tive a grande sorte de nascer no Porto e posso então dizer que sou, por naturalidade e por natureza, perfeitamente republicano quando se trata de delegar em outros, mais competentes do que eu por isto ou por aquilo, os poderes que eu próprio tenho.Mas na vida tenho eu encontrado gente muito superior a mim e a ela podia ter confiado o encargo de me dirigir no proceder, poupando-me muitas das tolices que tenho cometido; bastaria citar professores como Teixeira Rêgo, Leonardo ou Pires Lima ou mestres como Sérgio e, no Brasil, Lauro Travassos, mas logo de princípio tive como perfeita guia minha avó materna, viúva de pescador de Olhão; e aí, como não se tratou de delegar poderes, mas de os reconhecer como bem mais acima do que eu e de os seguir, fui, e ainda sou, monárquico; no que sou o que foram os portugueses dos melhores tempos, monárquicos quanto ao superior, republicanos quanto ao igual, tomando ainda a precaução de apreciar o candidato a rei antes de o reconhecer como tal e de o pôr de parte sem cerimónias quando ele se revelava incompetente para a missão. Seja como for, não fui crescendo no Porto, mas me levaram os destinos, ou a liberdade de criar, que é o fundamental do mundo, para a Barca d`Alva, dura aldeia naqueles princípios de século e nela aprendi a conhecer o Povo de Portugal, e alguma coisa do de Espanha, e me lembro muito bem do que ia acima de tudo que hoje se apelida de cultura a daqueles analfabetos, cultura humana que é a que importa, firme nos ideais e objectiva na vida, bem para lá daquele saber que com cultura se confunde e que pode estar mais completo nos livros e nas fitas gravadas - e que é em grande parte a cultura de tantos europeus, ou melhor, «ceéeus», tão privados de humanidade que já nem sabem ter filhos. Pois do que também me lembro muito bem, daqueles três anos da Barca, é da morte de minha primeira irmã, logo a seguir a mim, aquela Estrela Estefânia, que nunca andou, que nunca vi alegre, afinal nunca me apareceu senão que em braços embalada para morrer. Aldeia de matar, a Barca. Pois hoje a mesma terra, ligada a Trás-os-Montes por ponte acho que de Edgard, mas nem o comboio que levava viajante para Salamanca ou Lourdes tem desde há muito um Douro navegável do Porto à fronteira, o que dá a Castela, ou a Leão-Castela, como quiserem, um porto de mar uns 200 quilómetros mais perto do que seria, por exemplo, o Santander no Cantábrico. E vede só: o que me acontece é que, estranhamente mas profundamente, ligo a chegada do transporte fluvial ao cais da Barca àquele não poder de vida que foi o de Estrelinha como se, morta para nós, tivesse vivido mais que inteira para outra vida, a de conseguir que mais crianças do interior não fossem as vítimas que ela foi; passou a Barca de aldeia que mata a aldeia que dá vida e anima, como deviam ser, e são, todas as aldeias de Portugal; ou todas as aldeias do mundo, se plenamente nos cumprirmos nós das nossas.
Comentários, não estou à altura de os fazer. Tiro o chapéu a mestre Agostinho e agradeço ao meu amigo Leston Bandeira, que dirigiu galhardamente o jornal "África" durante cerca de 10 anos, a preservação dos textos que tencionamos publicar brevemente em forma de livro.
Fontes: Jornal "África", 22.8.1990.
Fotografia de Agostinho da Silva: Internet.
Fotografia do rio Douro junto a Barca d`Alva: autor.
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