DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

LUBANGO


Às vezes, um homem resguarda-se nas recordações. Há dias, deu-me para procurar um álbum velho de fotografias. Abri-o e vi-me menino.
Nessa noite, sonhei que tinha morrido e que me iam meter num caixão grande demais. Era como se tivessem esperado que eu continuasse a crescer e me fizesse maior do que sou.
Numa parte do sonho, alguém pegou num retrato meu. Rasgou-o em pedaços e foi embora. Antes de sumir, voltou-se para trás e mandou-me reconstituir a minha própria fisionomia.
Não sei quem era o mandante, mas detinha algum ascendente sobre mim. Esforcei-me por obedecer. Não fui, porém, capaz de encaixar os retalhos num todo coerente. As peças não se ajustavam. Pareciam provir de existências diversas.
Acordei a meio da noite e preocupei-me. Se calhar, andava a sonhar os sonhos de outrem.
Vou adiantado em anos. Há que dar sentido ao mundo e entender os passos dados. Resolvi regressar a Sá da Bandeira, à procura do fio condutor que faltava à minha vida.
Levantei-me antes de amanhecer, lavei-me e vesti-me. Durante o pequeno almoço, tomei a decisão de começar a busca.
Não o fiz de forma física. A minha cidade fica longe, no espaço e no tempo. Não a visito desde 1964. Havia de ter dificuldade em reconhecê-la, pois a guerra transformou Angola toda. A maioria dos habitantes brancos refugiou-se em Portugal.
O nome do baptismo, Sá da Bandeira, foi riscado do mapa. Desapareceu da geografia, mas não da memória. Dantes, tinha duas denominações. Agora, chama-se apenas Lubango.
Existe, hoje, outra povoação onde moram homens e mulheres diferentes. Estou certo de que, se regressar, me irei sentir estranho. Afundei raízes deste lado do mar. Se voltasse, poderia perder-me nos caminhos novos e até nos velhos.
No entanto, ao percorrer as ruas da lembrança, o asfalto ainda lá está, como um tapete liso. Os jardins continuam bonitos e as árvores frondosas. Os pássaros esvoaçam, como sempre. As montras permanecem espelhadas e cheias de coisas que apetecem. As cascatas da Huíla e da Hunguéria refrescam os sentidos. Os precipícios do Bimbe e da Tundavala continuam a assustar.
Posso imaginar, representadas numa única fotografia, as pessoas que foram importantes para mim, enquanto crescia. Estão lá todas. Ninguém morreu nem fugiu. Não há quem retoque a memória com os estragos do tempo. As moças da minha geração não engordaram nem envelheceram. Ao fundo, reina a Ponta do Lubango. É a mãe de todas as recordações.
Um homem não manda nas lembranças, mas consegue orientar-se por elas. Pode, também, inventá-las, ou usar as de outros e fingir que são suas. Foi assim que este livro começou a nascer. Não é uma autobiografia, embora mostre coisas que me pertenceram ou que ainda são minhas.
Acho que fiquei obcecado pela ideia da fotografia. No centro da imagem que construí, está o meu pai. Eu apareço muitas vezes, com estaturas e rostos que vão mudando. As outras pessoas figuram apenas uma vez.
Não se admirem se as qualidades de alguns e os defeitos de muitos vos parecerem exagerados, nem se espantem por me escaparem acontecimentos óbvios. Eu era pequeno e olhava o mundo de baixo. Qualquer obstáculo me limitava o campo de visão. E, depois, as palavras hão-de parecer sublinhadas, especialmente quando falo de meu pai.
Constatei cedo que a história de um rapazinho não chegava para preencher um volume de duzentas páginas sem entediar o leitor e que a descrição da minha vivência familiar era importante apenas para mim e para os meus irmãos. Servia, no entanto, de testemunho de uma certa forma de colonização. É isso que vale e por isso fica.
Ainda pensei em enfeitar o texto com episódios conhecidos, mas arrependi-me logo. Por um lado, vim de lá novo e sei pouco. Por outro lado, alguns intervenientes estão vivos e poderiam não gostar do modo como seriam retratados. Soltei, pois, a imaginação, com os perigos que ela comporta.


(Do prólogo do romance "Lubango", a publicar em breve).
Fotos: Internet.

1 comentário:

  1. Boa Tarde!
    Ler o que escreve dá um imenso prazer, penso que a muita gente pela qualidade da prosa,(ou não fosse por escritor reconhecido) mas especialmente a quem, como eu guarda a maravilhosa lembrança das terras onde vivemos.
    Obrigada
    Cumprimentos
    Zory

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