Nas terras de Angola, há noites sem lua em que a luminosidade preenche as almas até ao deslumbramento. É como se presenciássemos o nascer de estrelas e nos tornássemos menores. Há mais. Ouvem-se, ao longe, tambores. Pretendem comunicar com os espíritos. Talvez o não consigam, mas acercam de nós a ideia de infinito.
Numa noite assim, acampámos a meio da viagem entre a Omupanda e o Munhino. Antes de adormecer, entretive-me a olhar o céu. Lembrei-me do campo cheio de pirilampos, em Maio, na minha Ilfurt distante.
A dada altura, senti um incómodo vago. Parecia-me que faltava qualquer coisa nos desenhos do alto. Devia estar enganado. A verdade é que olhava poucas vezes o firmamento desde que Ilse casara.
Duas horas mais tarde, acordei com uma claridade estranha no cérebro. Não era luz forte: lembrava uma fogueira distante. Depois, o lume encolheu, como se alguém me andasse a espreitar os recantos da alma levando uma candeia com pouco azeite. Parava aqui e ali e emprestava alguma luz até a recordações esquecidas. Era como se tivesse deixado entrar um estranho na alma.
Fosse o que fosse, partira. Deixara um rastro de transgressão que eu não era capaz de definir nem de explicar. O que me afligia era que a intrusão viera acompanhada de uma sensação diluída mas identificável de prazer. Pareceu-me que ficara sem vontade de me opor a outra experiência igual.
Quis rezar um padre-nosso, mas não me lembrei das palavras. Tentei fazer o sinal da cruz, mas senti os braços presos.
Depois, reagi. Ordenei rapidamente os pensamentos, mesmo sem abrir os olhos.
Era católico e missionário. Evitava o mal. Procurava ser justo e perdoar aos que me ofendiam. Respeitava o povo que servia, mas não fazia concessões quanto aos caminhos que conduziam ao Senhor. Se Deus me levasse agora, colhia uma alma limpa.
Fortaleci com a oração. Logo a seguir, achei-me leve. O que entrara tinha saído.
Reflecti sobre o que se passara e concluí que fora apenas um sonho, embora o visitante parecesse ter deixado marca no meu espírito.
Em: O Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo (a sair em breve).
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