DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O ENCONTRO

Nas terras de Angola, há noites sem lua em que a luminosidade preenche as almas até ao deslumbramento. É como se presenciássemos o nascer de estrelas e nos tornássemos menores. Há mais. Ouvem-se, ao longe, tambores. Pretendem comunicar com os espíritos. Talvez o não consigam, mas acercam de nós a ideia de infinito.

Numa noite assim, acampámos a meio da viagem entre a Omupanda e o Munhino. Antes de adormecer, entretive-me a olhar o céu. Lembrei-me do campo cheio de pirilampos, em Maio, na minha Ilfurt distante.

A dada altura, senti um incómodo vago. Parecia-me que faltava qualquer coisa nos desenhos do alto. Devia estar enganado. A verdade é que olhava poucas vezes o firmamento desde que Ilse casara.

Duas horas mais tarde, acordei com uma claridade estranha no cérebro. Não era luz forte: lembrava uma fogueira distante. Depois, o lume encolheu, como se alguém me andasse a espreitar os recantos da alma levando uma candeia com pouco azeite. Parava aqui e ali e emprestava alguma luz até a recordações esquecidas. Era como se tivesse deixado entrar um estranho na alma.

Fosse o que fosse, partira. Deixara um rastro de transgressão que eu não era capaz de definir nem de explicar. O que me afligia era que a intrusão viera acompanhada de uma sensação diluída mas identificável de prazer. Pareceu-me que ficara sem vontade de me opor a outra experiência igual.

Quis rezar um padre-nosso, mas não me lembrei das palavras. Tentei fazer o sinal da cruz, mas senti os braços presos.

Depois, reagi. Ordenei rapidamente os pensamentos, mesmo sem abrir os olhos.

Era católico e missionário. Evitava o mal. Procurava ser justo e perdoar aos que me ofendiam. Respeitava o povo que servia, mas não fazia concessões quanto aos caminhos que conduziam ao Senhor. Se Deus me levasse agora, colhia uma alma limpa.

Fortaleci com a oração. Logo a seguir, achei-me leve. O que entrara tinha saído.

Reflecti sobre o que se passara e concluí que fora apenas um sonho, embora o visitante parecesse ter deixado marca no meu espírito.


Em: O Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo (a sair em breve).

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