A bordo do Gil Eannes, 8 de Maio de 1970
Estamos fundeados em Virgin Rocks. Quando a névoa dispersa, chega a ver-se o quebrar das ondas no Manoleijo, um rochedo submerso que é referência comum em conversas de pescadores.
Ontem, ao fim da tarde, perdeu-se um bote. O nevoeiro não permitia a visibilidade para além de cinquenta metros. Por vezes, quando a neblina é densa, reflecte ou desvia o som, e os avisos roucos das buzinas dos navios parecem vir de direcções enganadoras. Um homem que vá por elas pode esgotar-se a remar para o inferno.
Durante perto de duas horas, estivemos grudados à fonia, acompanhando a evolução das buscas, uma vez que nos encontrávamos longe demais para participar nelas. Estava um homem sozinho num dóri, perdido no nevoeiro, e a noite aproximava-se.
As condições de navegabilidade desses botes de fundo chato são precárias e as possibilidades de orientação limitadas. As previsões meteorológicas eram desfavoráveis.
Quatro navios de pesca à linha encarregaram-se da pesquisa. Três dóris, tripulados por pescadores "maduros", arriaram também, que a falta de um companheiro pesa mais do que o medo da noite no mar.
As vozes que nos chegavam das pontes de comando dos navios distantes não vestiam matizes de emoção: soavam calmas e quase frias. Era o auto-domínio que o hábito de conviver com o perigo dava. As indicações, as ordens, o terrivelmente simples "nada ainda", soavam como uma eficiência mecânica enquanto esses homens se esforçavam por recuperar uma vida ameaçada. Ouviam-se também palavras de ânimo: que o rapaz era forte e bom remador, que se aguentava! E chegavam os pormenores: era um "verde" do ano passado, de Caxinas; o irmão acompanhara-o quase até ao fim da faina e deixara-o pouco antes do desaparecimento, quando ainda se não adivinhavam problemas.
Se um dóri está bem carregado de bacalhau, da borda à água vai menos de um palmo e a ondulação, mesmo com mar calmo, facilmente o galga. Um pescador tem de remar, ao mesmo tempo que, com o bartedouro, vai esgotando a água que entra. É fácil morrer nos bancos da Terra Nova.
É mais frequente ocorrerem desgraças com bom tempo do que com mau. Os homens facilitam, e mais se a pesca é boa. Tendem a ignorar o perigo e carregam os botes para além dos limites da prudência.
O dóri foi achado quando a noite começava a tingir de escuro o cinzento das águas. Hoje o pescador arriou outra vez, que o mar é generoso mas não perdoa a quem o teme.
Bom dia
ResponderEliminarLi agora Crónicas do Mar e gostei de conhecer esta sua feceta de vida de "marinheiro" que não aparece nos seus livros e é bastante curiosa.
Cumprimentos
Zory
Vês, Trabulo, como tenho razão!
ResponderEliminarA tua vida de marinheiro tem muito que contar.
Abraço