DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 5 de janeiro de 2025

 



        UMA CARTA DO PORTO

 

Recebi ontem uma carta do Porto. Reconheci a letra, um bastardinho bem desenhado, mesmo antes de ler o nome de quem a enviara.


                                                     

Era do Camilo. Rezava assim:


Meu caro António:

Já não conversamos há bastante tempo. Julgo que não voltámos a contactar desde a última entrevista que fez para a minha biografia. A propósito: acho que foi muito avaro nos encómios. Sei que cultiva um estilo contido, mas, de vez em quando, deveria soltar-se mais. Enfim…

      Há um par de dias, tentei telefonar-lhe, mas a rede, aqui, é fraca.            

                                    


                         

      Estará a adivinhar a razão pela qual lhe escrevo. Vão transferir os restos mortais de Eça para o Panteão Nacional.  

       Nada tenho contra o Eça de Queirós. Escreve muito bem, apesar de cultivar um estilo que me parece afrancesado. “O crime do Padre Amaro” trouxe-me logo à memória “O crime do abade Mouret”, de Zola. De incestos como o de “Os Maias” estão o mundo e o inferno cheios. Os estilos naturalista e realista fizeram-se moda na literatura e o Eça prosperou. Acho bem… Para mais, o pai dele, o juiz Queirós, escusou-se a julgar-me no caso do adultério, por ser meu amigo. Bem, são coisas que já lá vão.

O António conhece-me e sabe que sempre me dei bem com a escrita. Houve mesmo quem me considerasse, em tempos, “o maior romancista da Península Ibérica”. E olhe que o cavalheiro que escreveu esta frase não era português… Não será pecado de vaidade julgar-me com direito a um reconhecimento nacional.

Sei que o António, aqui há uns anos, propôs no seu blogue a transferência do que resta de mim para os Jerónimos. Achei bem, mas a ideia foi recebida com desagrado por alguns intelectuais do Porto. Que era preciso combater o centralismo de Lisboa e que eu era um homem do Norte e que devia ficar cá! Cebolório… 

Um amigo meu que andou pelo mundo e que repousa aqui perto garante que aquilo é o complexo da segunda cidade. Enfermam dele Edimburgo e Barcelona.

Os do Porto consideram-me de cá. Sinto-me honrado com isso. É verdade que não amei outra cidade tanto como esta (nem falei tão mal de qualquer outra), mas o certo é que nasci em Lisboa, na Rua das Rosas e que, mais que do Porto, de Lisboa, da Samardã ou de Seide , me considero português. 

    


Escrevo-lhe do cemitério da Ordem da Lapa, no Porto. Apesar de ocupar uma divisão alta, tenho vista apenas para um passeio empedrado, para mais sepulcros e para uma ou outra árvore. O jazigo do Freitas Fortuna parece-me acanhado e o meu nome está inscrito na fachada em posição secundária. 

Com este meu pecadilho da vaidade, sempre procurei o reconhecimento dos meus contemporâneos. Lutei muito até conseguir um título nobiliárquico, que me pareceu importante na altura. Lá me fizeram Visconde de Correia Botelho. Confesso que a distinção me soube bem.

Pretendo mudar-me para os Jerónimos. Até já lá está o Herculano, cuja escrita nunca me agradou. As circunstâncias da vida levaram-me a pedir-lhe que apadrinhasse a minha intenção de concorrer a um lugar na biblioteca do Porto. Cheguei a oferecer-lhe um cão são-bernardo, o Tigre. O empenho de Alexandre Herculano não foi suficiente para decidir a questão em meu favor. Semanas depois, desloquei-me a Lisboa e passei pela casa do Herculano, na Ajuda. Em vez de tocar à porta, assobiei. O Tigre saltou o muro e lambeu-me todo. Levei-o comigo.

Peço perdão por me ter alargado. Já deixei escapar parte da mensagem que lhe dirijo: quero mudar-me para o Panteão Nacional. Terá, entre os seus amigos e conhecidos, quem seja capaz de advogar a minha causa?

Saberá, melhor do que eu, como é que essas coisas se fazem: um par de artigos em jornais, um abaixo-assinado… Dizem que as televisões têm muita influência, nos dias que correm mas, como já lhe disse, aqui não tenho rede .

 

Seu amigo agradecido

 

Camilo

 

 

Vou reencaminhar esta carta para um grupo de amigos e conhecidos. Nem todos concordarão comigo, mas considero que esta é uma causa pela qual vale a pena lutar.

 

António Trabulo


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