DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 14 de outubro de 2023

 


 NOS CONFINS DA NOSSA LÍNGUA

Já não leio tanto como dantes. Por necessidade da escrita, habituei-me a fazer consultas – ia dizendo a estudar - em vez de me dedicar à leitura recreativa.

Calhou há dias retirar duma das estantes dois livros há muito abandonados e porventura  nunca abertos: OS MELHORES CONTOS DE OITOCENTOS, da Esfera do Caos, que contem obras de Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão e VELHAS ESTÓRIAS de José Luandino Vieira, publicado pela União dos Escritores Angolanos. Ora, em vez de pegar num volume e o ler até ao fim, como fazem os leitores sensatos, deu-me para ler à vez um conto de Herculano e outro de Luandino.

O contraste não poderia ser maior.



Herculano dedica-se a fazer incursões pelo nosso passado histórico e alimenta em parte os seus escritos com a recriação de velhas lendas perdidas no pó dos séculos. Recolhe vocábulos há muito esquecidos e enfeita com eles a sua prosa.

Negócio grave, por certo, o fez sair a tais desoras da crasta da sua Sé.

 


Luandino escreve de uma maneira muito própria. Transcreve para os textos a linguagem popular dos meninos dos bairros pobres da Luanda onde cresceu ( o escritor nasceu em Portugal mas foi para Angola com três anos de idade), o que torna fácil tropeçar na sua linguagem.

Mais velho cospe ignorância deles, xacata seus passos de cágado sábio.  

Herculano faz-se arcaico, para parecer mais ao jeito da época em que situa a narrativa: 

À porta do aguião, em Toledo, tem a mourisma um grande campo, todo mui bem apalancado.  Ali fazem grandes festas, guinolas e touros nos dias de seus perros santos, segundo lá lhos pregam e determinam catibes e ulemás. 

Luandino chega a registar algumas ideias em kimbundo, o que as faz incompreensíveis para a maioria dos leitores portugueses, e desconfio mesmo que se compraz em inventar palavras novas. A sua prosa está impregnada das expressões que vivenciou. A construção das frases esquece com frequência a tradição portuguesa e mergulha na oralidade vivida mesmo ao lado.

Bungulava, o mais velho? Se ouviam gungumes de bode, cada vez às noites, muitos que juravam fogueira do guarda acendia sem o pau de fósforos, tudo só magicaria.

Enuncia, de onde em onde, provérbios da sabedoria tradicional angolana:

Menina mania morreu nova, ngana prudência foi no óbito 

Durante alguns dias, fui navegando entre a Dama Pé de Cabra e Muadiê Gil, o Sobral e o Barril e entre O Bispo Negro e Manana, Mariana, Naninha. Tinha assim, ao alcance do braço, dois dos extremos da língua portuguesa.



Conheci a escrita de Alexandre Herculano muito cedo, logo no princípio da puberdade. Eu era um leitor compulsivo e tinha em casa algumas estantes com livros. Ali perto, estava aberta a biblioteca da catedral do Lubango e, um pouco mais longe, podia dispor da do Liceu Diogo Cão. Cresci numa época em que poucos sonhavam com as tecnologias de agora. Na Angola do meu tempo, não existia televisão.




Tomei conhecimento da existência de José Luandino Vieira pela mão do Fernando Sabrosa, companheiro dos 1000-Y-onários, a república que ficava do outro lado da nossa ( Kimbo dos Sobas), na rua Antero de Quental, em Coimbra. O Sabrosa assumira a missão de distribuir o Luuanda pela malta. Seria por volta de 1964. Depois, durante alguns anos, quase não voltei a ouvir falar do autor. Soube apenas que tinha sido preso pela polícia política e que conhecera várias prisões de Luanda antes de ser enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde, onde passaria oito anos. Aliás, Luandino passou em calabouços muitos dos anos em que a vida de um escritor é mais fértil e produtiva.

Anos mais tarde, soube que a Linda, a sua primeira esposa, casara em segundas núpcias com o Mário, irmão de dois amigos meus muito chegados.

Em 1965, a Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu a José Luandino Vieira o Grande Prémio de Novela, pela sua obra Luuanda. A honraria determinou a extinção daquela associação de escritores pela censura fascista.

No ano de 1972, Luandino saiu em liberdade condicional e domiciliou-se em Lisboa, sob vigilância policial.

Após o 25 de Abril, regressou  a Angola. O MPLA reconheceu o seu valor e o seu passado de sacrifício e nomeou-o diretor do Departamento de Orientação Revolucionária. Foi ainda diretor da Televisão Popular de Angola e, depois, do Instituto Angolano de Cinema.  

No entanto, Angola mudara e ele também. Em 1992, regressou a Portugal, onde nascera e foi viver para uma zona rural do Minho, perto de vila Nova de Cerveira. A razão próxima da desistência da causa de uma vida terá sido o reinício da guerra civil angolana. Outros motivos haverá, mas o escritor calou-os.

No ano de 2006, foi-lhe atribuído o Prémio Camões. Para espanto de muitos, recusou a maior honraria da literatura de língua portuguesa. O prémio tinha um valor pecuniário de 100.000 euros e Luandino vivia pobremente. Diria mais tarde que o recusara por se considerar um escritor morto e que o galardão deveria ser atribuído a alguém mais ativo nas letras. No entanto, Luandino continuava a escrever e, ainda nesse ano, publicou outros dois livros. Ninguém sabe o que lhe ia na alma.

Alexandre Herculano nasceu em 1810 e faleceu em 1877. Está sepultado no Mosteiro dos Jerónimos.

Luandino Vieira conta 88 anos. Espero que viva mais uns tantos.



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