CAÇA ÀS BRUXAS
As caçadas às bruxas têm
raízes distantes. Já o Código de Hamurabi (1800 a.C.) mandava lançar ao rio
sagrado os acusados de feitiçaria. Se se afogassem, o acusador tomaria posse da
sua casa e dos seus bens. Se o rio os declarasse inocentes, seria morto o
acusador. Era uma forma de incentivar a aprendizagem da natação.
A Bíblia condenava a feitiçaria: “Entre ti não
se achará agoureiro, nem feiticeiro, nem adivinhador, nem quem consulte os
mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor.” Seria mais
uma forma de afirmação no monoteísmo. As crenças tradicionais deveriam ser
abandonadas.
O Direito romano
precaveu-se contra encantamentos e feitiços, pelo menos ao longo de 800 anos.
Acreditava-se que os malefícios prejudicassem as culturas de cereais. Em 186 a.
C. o senado romano limitou as celebrações a Lucifero, deus das bruxarias. Nos
anos imediatos foram executadas 5.000 pessoas. Muitas delas foram consideradas
responsáveis pela eclosão de epidemias.
Dianus Lucifero era o deus
romano das bruxas, da luz e do esplendor. O nome foi posteriormente associado
ao diabo dos cristãos. Era o senhor da Estrela Matutina e Vespertina. Tratava-se
de um personagem complexo. Tanto assumia o aspeto de Dis, o deus da Morte e do
Além, como o de Lupercus, a Criança da Promessa, portadora da luz e da
esperança. Apresentava-se com três figuras diferentes. O “Cornífero” era o
senhor das florestas e da sexualidade. O “Encapuçado” reinava sobre os campos e
as plantações. Na forma de “Ancião”, guardava a sabedoria e os santuários.
De início, a Igreja Católica
não levou as bruxas muito a sério. O código lombardo de 643 decretava: “Que
ninguém pretenda matar uma estrangeira como bruxa, pois isso não deve ser
acreditado por mentes cristãs”. O Concílio convocado por Carlos Magno para
Frankfurt em 749 considerou supersticiosa a crença na bruxaria e impôs a pena
de morte àqueles que queimassem bruxas. Em 906, uma lei canónica afirmava que
acreditar em bruxas e bruxarias constituía heresia. Em 1100, o rei Kálmán da
Hungria proibiu a caça às bruxas e declarou que elas não existiam. Em 1020,
Burchard, bispo de Worms, desmentiu a existência de práticas que a imaginação
popular atribuía às bruxas, como a elaboração de poções mágicas, o poder de
voar em vassouras nas noites de sábado, a transformação do amor em ódio e de pessoas
em animais e as relações sexuais com demónios.
Os papas alinhavam com as
opiniões dominantes na época. Em 1080, o papa Gregório VII, em carta ao rei
Harold da Dinamarca, proibiu que as bruxas fossem mortas por suspeitas de
desencadearem tempestades, pestes e más colheitas.
Atribuíam-lhes tudo o que
corria mal no mundo, em especial os acontecimentos extraordinários e
inexplicáveis. Para serem precisos tantos desmentidos, é porque as crenças em
bruxarias eram fortes e arreigadas. O cristianismo conviveu, na Europa, com
crenças mais antigas que nunca foram erradicadas por completo.
Em consequência dessa tolerância, as mulheres
que benziam e praticavam curas tornaram-se respeitáveis na Europa medieval.
Havia “mulheres sábias” em quase todas as aldeias. Habitualmente, eram viúvas
ou solteiras e conheciam bem as ervas medicinais. Faziam de médicas,
enfermeiras, parteiras e adivinhas. Continuavam pobres.
Depois, as ideias mudaram
e as bruxas voltaram a ser encaradas com maus olhos. A meio do século XIV, a
peste negra matou um em cada três europeus. A peste e as más colheitas foram
atribuídas a poderes malignos que pretendiam destruir os reinos cristãos. Os
turcos otomanos eram apontados como os principais culpados, mas falou-se também
de associações entre bruxas e judeus. A perseguição recomeçou. A caça às bruxas
ganhou novo ímpeto, sobretudo no norte da Europa, e os julgamentos e as
execuções tornaram-se comuns. O período mais tenebroso ocorreu entre 1580 e
1660.
Em 1486, os inquisidores
James Sprengler e Heinrich Kraemer publicaram o livro Malleus Maleficarum
(Martelo das feiticeiras), considerado “a Bíblia do caçador de bruxas”, a que a
Igreja Católica deu pouca importância. O livro enumerava as práticas demoníacas
e foi aceite pela Reforma protestante. O Malleus Maleficarum conheceu 28
edições. Teve grande difusão nas colónias inglesas puritanas da América e foi
utilizado no célebre processo das bruxas de Salém.
Até perto do final do
século XVI, a distinção entre as bruxas, que faziam o mal, e as curandeiras,
que tratavam as doenças era clara, no espírito do povo e das autoridades. Tudo
mudou e a diferenciação atenuou-se. Milhares de pessoas inocentes (sobretudo
mulheres) foram queimadas vivas.
A partir de 1660, a
situação começou a melhorar. O Iluminismo generalizou-se nas elites culturais
europeias, que deixaram de acreditar em bruxas. Elas continuaram, porém, a ser
temidas na imaginação popular. Os linchamentos prosseguiram durante mais dois
séculos. Chegou a considerar-se que a caça às bruxas teria vitimado nove
milhões de pessoas. Estudos históricos recentes, com recurso a metodologia
científica, fizeram baixar esse número para menos de 100.000.
Contrariando a ideia
prevalecente, que acusava a “Santa” Inquisição da responsabilidade pela maioria
desses crimes legais, os investigadores concluíram que a maior parte das
vítimas foi julgada e sentenciada por tribunais civis. Os juízes locais foram,
geralmente, mais ferozes.
As confissões de algumas
acusadas levantaram a suspeita de intoxicação. Algumas bruxas estavam mesmo
convencidas de terem feito sexo com o demónio. A cravagem do centeio, o pão dos
pobres, provocava o ergotismo, doença que produzia, entre outros sintomas,
alucinações e gangrenas secas. Há quadros de pintores flamengos que retratam
grupos de pobres sem membros. Alguns levavam pendurados ao pescoço os membros
amputados para inspirarem piedade.
Como em outros fenómenos
sociais, aconteceram, com as bruxas, episódios de oportunismo malicioso. Certas
acusações de bruxaria tinham como finalidades a vingança ou a vontade de ficar
com os bens da vítima.
No nosso país, a
Inquisição teve uma presença poderosa e demorada. Poucos autores se dedicaram a
este tema. O trabalho do professor de História da Universidade de
Massachusetts, Timothy Walker, que investigou as perseguições aos curandeiros
acontecidas em Portugal ao longo da época das luzes, é uma exceção notável. Com
base no estudo dos registos dos tribunais regionais da Inquisição existentes na
Torre do Tombo, publicou, em 1992, o livro “Médicos, Medicina Popular e
Inquisição: a Repressão das Curas Mágicas em Portugal durante o Iluminismo.
Terá avaliado os assentamentos de quarenta mil casos.
No seu modo de ver, o
aparelho repressivo da Inquisição foi utilizado contra os curandeiros e
saludadores pelos médicos que trabalhavam, como “familiares” para o Santo
Ofício, durante o século XVIII. Era um aspeto do conflito entre a cultura
médica erudita e as crenças populares. Tratava-se, essencialmente, de eliminar
a concorrência. Ainda segundo Walker, a experiência portuguesa foi única:
“entre 1715 e 1770 foram julgados pelos tribunais da Inquisição mais de 500
suspeitos de feitiçaria e nenhum foi executado”. Eram já os nossos brandos
costumes.
Os curandeiros
desenvolviam essencialmente a sua atividade nos meios rurais, prestando um
serviço que atualmente se poderia chamar cívico e que alguns designam por
“magia protetora”. Aconselhavam dietas e prescreviam remédios caseiros
associados à recitação de rezas e benzeduras. Na verdade, não existia
alternativa aos saludadores. Raramente havia médicos nas pequenas povoações.
Modificado de "O Homem do Sobretudo cinzento", romance em preparação.
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