AS VOZES NO MARFIM
I
Quando admiro uma escultura em que figura um homem ou uma mulher, começo quase sempre por lhe dar um nome. É falso, mas isso pouco me importa. Sei que, ao dizê-lo, o estou a aproximar de mim.
Apresento-vos o Rodolfo. É homem sereno de meia-idade, cheio de confiança nele próprio, de olhar atento e desconfiado, talvez um nadinha vaidoso. Foi esculpido num dente de javali. Seria o material que o artista tinha à mão.
Os
negros angolanos não sabiam escrever. Ainda hoje, há muitos que não sabem.
Mesmo assim, as lendas e os contos proferidos à volta da fogueira vão passando de
geração em geração, transmitindo a experiência, as expectativas e até o sentido de humor de um grupo que não desata os laços que o unem ao passado e vai garantindo a própria identidade.
Os
cantares foram sempre uma manifestação cultural importante entre os africanos.
As tribos construíam instrumentos musicais relativamente variados, com a tónica
na percussão.
A
escultura era outra das formas de honrar os espíritos e de manter vivos os
conhecimentos antigos. As gentes nómadas pouco a desenvolveram. Deviam limitar
ao mínimo os carregos que transportavam. Com a agricultura e a sedentarização, desenvolveu-se
o trabalho na madeira e no marfim e foram-se talhando maravilhas.
A
natureza da madeira torna-a pouco duradoura. O marfim atravessa mais
gerações. A pedra era pouco usada, mas alguns povos africanos dominaram a manufatura dos
metais.
Hoje, vou falar do marfim.
Hoje, vou falar do marfim.
Nem
sempre as histórias que nele são escritas se mostram fáceis de ler. Algumas falam de
tradições perdidas, de métodos de produção abandonados e de regras de conduta
que não perduraram. Ainda assim, são proferidas numa língua universal e
enaltecem o trabalho e a valentia. Cantam a beleza das mulheres e a sabedoria
de alguns homens.
Apreciem a graça deste antílope ajoelhado. Pelo desenho dos cornos, diria que é um
orix. O escultor emprestou-lhe a leveza que é apanágio dos espíritos. Reparem na elegância da
silhueta, na delicadeza das orelhas e na graciosidade da cauda.
Como
é bela esta rapariga, orgulhosa do viço da sua juventude! Dei-lhe o nome de Mariana.
Trata-se de uma peça recente, sofisticada e com trabalho de máquina.
Provavelmente, a estatueta será produzida em série. Quanto tempo terão levado as amigas, ou
a mãe, a esculpir a obra de arte que é o seu penteado? Que lindo o volumoso
colar adornado!
Mostro
agora uma dama negra, com expressão de dignidade e de certo orgulho no
rosto. A peça tem 23 cm de altura. Vamos rodar lentamente o seu toucado. As
figurinhas nele esculpidas têm, no máximo, 4 cm de altura.
Um
homem parece querer subir a uma árvore enquanto outro, de costas voltadas, toca
um tamborim.
Modificando ligeiramente a posição, vemos junto ao músico uma mulher
que mói o milho e uma figura ajoelhada que segura na mão um objeto que não sei identificar.
Aparece depois a palmeira. Uma figura levanta o que poderá ser uma criança.
Um homem dobrado sobre o peso transporta aos
ombros um pau que parece ter suspenso em cada extremidade um molho de cocos. Tem
um punhal à cintura.
Rodando um pouco mais, acabamos a volta. Observa-se uma figura que carrega à
cabeça lenha atada. Não se lhe entende o género.
Tudo
isto se encontra na touca da mulher a que chamei Patrícia. São representações da vida quotidiana do seu quimbo.
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