Pouco tenho escrito nos blogues nos últimos tempos.
Felizmente, não tenho estado doente, e não se trata de preguiça ou de
desinteresse. Isto acontece quando atravesso períodos de maior produção
literária.
Apresento-vos a minha obra mais recente. É um volume de 33
contos.
Irei divulgar aqui alguns dos mais pequenos. Começo com «Os Henriques».
OS
HENRIQUES
Não
via o Henrique há muito tempo. Não sei bem há quanto, mas julgo que passaram
três dezenas de anos. Ontem, encontrei-o duas vezes, com intervalo de horas.
Estranhamente, passou por mim com idades diferentes.
Aconteceu
primeiro de manhã. Eu tinha ido tomar café e comprar o jornal. Surpreendeu-me
vê-lo tão estragado. O que me devia admirar era a estranheza. Lembro-me de ter
escrito em algum lado que ninguém retoca as recordações com os estragos do
tempo. Ele não estava mais novo nem mais velho do que deveria estar. Afinal de
contas, somos da mesma idade.
Não
me viu. Passou por mim no seu costumeiro passo rápido. Voltou-se, quando o
chamei. Ficou surpreendido. Reconheceu-me e deu-me um abraço apertado.
─
António! Não te via desde o Lubango. Estás mais gordo… Disseram-me que eras
médico.
O Henrique sabia que eu gostava de falar de
mim. Mesmo nas vidas menos aventurosas, acontecem muitas coisas em trinta anos.
Contei algumas. Ele escutou-me durante alguns minutos, antes de me interromper.
─
Desculpa, mas tenho um encontro marcado e já levo algum atraso. Para a próxima
vez, conversamos mais.
Tirando
as rugas, a falta de cabelo e as lentes mais grossas, afinal tinha-se
modificado pouco. Lembro-me dele sempre cheio de pressa. Foi-se embora sem me
dar a oportunidade de lhe indicar o meu número de telemóvel.
Depois
do almoço, voltei a encontrá-lo, na mesma rua e quase no mesmo sítio, mas com
muito menos anos. Viu-me antes de eu o ver e dirigiu-se logo a mim. Não pareceu
reparar que eu tinha envelhecido. Iria jurar que nem deu por isso.
Foi fácil reconhecê-lo. Recordo bem o
adolescente esgrouviado que tinha a fama de espreitar as miúdas na casa de
banho e gostava de subir às árvores dos quintais do Lubango.
Não
tinha mudado. Devia ter os mesmos quinze anos e continuava cioso da sua
motorizada nova.
─ António! Como vão os estudos? Continuas a ser
bom aluno?
Nem
sei bem o que respondi. Deixei de estudar há muito tempo.
Era
o Henrique, ou melhor, eram os Henriques. Voltei a encontrá-los algumas vezes,
nessa mesma semana. Trocámos conversas rápidas. Demonstravam pouca simpatia um
pelo outro. Nunca os vi conversar cara a cara. Vinham ter comigo e falavam como
se eu fosse uma espécie de mensageiro. Por vezes, senti-me obrigado a branquear
a dureza das mensagens que enviavam.
O
Henrique novo considerava que o mais velho conseguira pouca coisa da vida. Nem
sequer se tinha licenciado. O de mais idade achava o puto pretensioso e com
ambição a mais.
O
mais novo acusava-o de ter deixado a Sofia, por quem se tinha apaixonado.
─
Ele não tem olhos na cara! Não viu que poderia ter sido feliz com aquela mulher?
Abandonou-a e, agora, andam para aí os dois aos tombos…
─
Esse pateta nunca soube que ela cheirava mal da boca!
─
Deixaste de falar com a mãe quando o pai morreu!
─
Eu gostava muito do pai. A mãe atraiçoou-o com um gajo do Banco de Portugal.
Os
Henriques desapareceram. Não os voltei a ver. Não lamentei as partidas. Era
amigo de ambos e sentia-me desconfortável no papel de pombo-correio.
O
tempo prega-nos partidas e chega a ser difícil entrançar as idades que se vão
sucedendo. Recordo um fragmento de um poema que escrevi há muitos anos:
É frágil o fio que ata aos outros os dias de uma vida
e o adolescente que fui é-me
pouco familiar…
Quem poderá dizer que são
mesmo suas as recordações?
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