JERÓNIMO BOSH
A
descrença tem um preço e o positivismo paga-se caro. Pelo menos para alguns, o
esforço de encarar o mundo e a vida de forma racionalista abre as portas ao
gosto da fantasia.
Esta
pequena introdução é um pretexto para falar de Jerónimo Bosh, um pintor que me
fascina.
Extração da pedra da loucura
Jeroen
(Hieronymus) van Anken, nasceu na Holanda em 1450 e viveu 56 anos. Assinou
alguns trabalhos como Bosh, abreviatura do nome da sua terra nata, Hertogenbosh.
Os espanhóis chamam-lhe “El
Bosco”.
Os
seus quadros testemunham uma imaginação prodigiosa. Será o primeiro de todos os
artistas fantásticos. Estranhamente, foi este visionário quem melhor
representou a pintura renascentista na Flandres do início do século XVI.
A
minha estranheza será fácil de entender quando se olha a sua pintura. O que
chama primeiro a atenção do observador não é a aproximação do mestre às
referências culturais da Antiguidade Clássica. O que salta à vista é a
representação pictórica do pecado e do medo escondidos no fundo das almas dos
seus contemporâneos.
Navio dos loucos
Existem
perto de 40 quadros de Bosh dispersos por museus da Europa e dos Estados Unidos
da América. O rei Filipe II de Espanha (o nosso Filipe I, primo de D.
Sebastião) apreciava as suas obras e adquiriu algumas. Será essa a razão de
pertencerem atualmente ao Museu do Prado alguns dos melhores trabalhos de
Jeroen van Anken, incluindo «O Jardim das Delícias Terrenas».
O
nosso museu das Janelas Verdes (Museu Nacional de Arte Antiga) tem o privilégio
de acolher as «Tentações de Santo Antão», um dos quadros emblemáticos do
pintor. O tríptico veio do antigo Palácio Real das Necessidades. Ninguém sabe
como lá foi ter. Há quem diga que pertenceu ao humanista Damião de Góis.
O
artista foi beber aos pesadelos próprios e alheios, à simbologia dos
alquimistas e aos textos sagrados apocalípticos. Criou figuras complexas,
originais e difíceis de entender. Produziu os seus melhores quadros à volta do
ano 1500. Os profetas do fim do mundo e do anti-Cristo agarraram-se sempre aos
números «redondos» do calendário. A Idade Média e os seus pavores ainda estavam
próximos. Algumas das figuras que pintou, fantásticas e diabólicas, por vezes
com vestes religiosas, refletem esses medos.
Hoje
vou falar das Tentações de Santo Antão. Nos próximos dias tratarei do «Jardim
das Delícias» e das influências que o pintor holandês exerceu sobre colegas seus muito distanciados no tempo.
Santo
Antão, um eremita egípcio do século III é considerado o fundador da vida
monástica. Era muito popular na Idade Média, sendo considerado protetor contra
o ergotismo, doença provocada pela cravagem do centeio. O santo é muitas vezes
representado na companhia de um porco. Comer mais carne e menos pão diminuía a
probabilidade de contrair a doença.
Antão
distribuiu os seus bens pelos pobres e passou vinte anos a meditar no deserto,
o que provocou a ira do diabo, que o tentou de todas as formas imagináveis.
Bosh
retrata a seu modo as tentações a que o pobre santo foi exposto. Rodeou-o de
monstros e demónios assustadores.
Conta
Atanásio de Alexandria – e quem sou eu para duvidar das suas palavras? – que o
diabo dispõe de mil maneiras para causar dano. «Aquela mesma noite
ouviu-se um ruído tão grande que tremeu todo aquele lugar. Os muros da sua cela
pareceram abrir-se, e entrou uma multidão de demónios; aparências de bestas
selvagens e répteis, espetros de leões, ursos, leopardos, touros, serpentes,
áspides, escorpiões e lobos enchiam o recinto».
O tríptico data provavelmente de 1505. Foi pintado em pleno Renascimento. Tanto esta obra como «O Jardim das Delícias» fazem a ponte, ou a transição, entre o imaginário medieval bem presente ainda na Europa e as influências renascentistas que iam ganhando terreno nas artes.
As
tentações começam no painel que fica à esquerda de quem olha. Em cima, o santo
é arrastado aos ares pelos demónios. A meio, enfraquecido, é amparado por
figuras piedosas. A parte mais interessante do painel está em baixo.
Há
demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um monstro patina no gelo para entregar outra.
Bem gostava de saber o que diziam as missivas. Poderiam anunciar o fim dos
nossos dias.
O
painel da direita mostra uma mulher despida a tentar o santo. Antão desvia
o olhar para o outro lado e lá estão outros seres maléficos a tentar
conquistá-lo com comida e bebida.
Ao alto, voa um peixe que transporta um casal.
No
painel central vê-se um templo cilíndrico, em ruínas, com a figura de Cristo
crucificado no seu interior. Ao fundo, arde uma aldeia.
As
partes média e inferior do quadro são ocupadas por figuras
diabólicas grotescas, em parte humanas e em parte compostas por animais, plantas ou
objetos.
É o painel central que transmite a mensagem essencial da obra. Estamos rodeados pelo
mal.
Só
com a renúncia às coisas do mundo e com a ajuda de Cristo se pode alcançar a
salvação.
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