DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

               JERÓNIMO BOSH

                                         


A descrença tem um preço e o positivismo paga-se caro. Pelo menos para alguns, o esforço de encarar o mundo e a vida de forma racionalista abre as portas ao gosto da fantasia.
Esta pequena introdução é um pretexto para falar de Jerónimo Bosh, um pintor que me fascina.
                                
Extração da pedra da loucura

Jeroen (Hieronymus) van Anken, nasceu na Holanda em 1450 e viveu 56 anos. Assinou alguns trabalhos como Bosh, abreviatura do nome da sua terra nata, Hertogenbosh. Os espanhóis chamam-lhe “El Bosco”.
Os seus quadros testemunham uma imaginação prodigiosa. Será o primeiro de todos os artistas fantásticos. Estranhamente, foi este visionário quem melhor representou a pintura renascentista na Flandres do início do século XVI.
A minha estranheza será fácil de entender quando se olha a sua pintura. O que chama primeiro a atenção do observador não é a aproximação do mestre às referências culturais da Antiguidade Clássica. O que salta à vista é a representação pictórica do pecado e do medo escondidos no fundo das almas dos seus contemporâneos.
                                
Navio dos loucos
                                                       
Existem perto de 40 quadros de Bosh dispersos por museus da Europa e dos Estados Unidos da América. O rei Filipe II de Espanha (o nosso Filipe I, primo de D. Sebastião) apreciava as suas obras e adquiriu algumas. Será essa a razão de pertencerem atualmente ao Museu do Prado alguns dos melhores trabalhos de Jeroen van Anken, incluindo «O Jardim das Delícias Terrenas».
O nosso museu das Janelas Verdes (Museu Nacional de Arte Antiga) tem o privilégio de acolher as «Tentações de Santo Antão», um dos quadros emblemáticos do pintor. O tríptico veio do antigo Palácio Real das Necessidades. Ninguém sabe como lá foi ter. Há quem diga que pertenceu ao humanista Damião de Góis.                              


O artista foi beber aos pesadelos próprios e alheios, à simbologia dos alquimistas e aos textos sagrados apocalípticos. Criou figuras complexas, originais e difíceis de entender. Produziu os seus melhores quadros à volta do ano 1500. Os profetas do fim do mundo e do anti-Cristo agarraram-se sempre aos números «redondos» do calendário. A Idade Média e os seus pavores ainda estavam próximos. Algumas das figuras que pintou, fantásticas e diabólicas, por vezes com vestes religiosas, refletem esses medos.
                           

Hoje vou falar das Tentações de Santo Antão. Nos próximos dias tratarei do «Jardim das Delícias» e das influências que o pintor holandês exerceu sobre colegas seus muito distanciados no tempo.
Santo Antão, um eremita egípcio do século III é considerado o fundador da vida monástica. Era muito popular na Idade Média, sendo considerado protetor contra o ergotismo, doença provocada pela cravagem do centeio. O santo é muitas vezes representado na companhia de um porco. Comer mais carne e menos pão diminuía a probabilidade de contrair a doença.
Antão distribuiu os seus bens pelos pobres e passou vinte anos a meditar no deserto, o que provocou a ira do diabo, que o tentou de todas as formas imagináveis.
Bosh retrata a seu modo as tentações a que o pobre santo foi exposto. Rodeou-o de monstros e demónios assustadores.


Conta Atanásio de Alexandria – e quem sou eu para duvidar das suas palavras? – que o diabo dispõe de mil maneiras para causar dano. «Aquela mesma noite ouviu-se um ruído tão grande que tremeu todo aquele lugar. Os muros da sua cela pareceram abrir-se, e entrou uma multidão de demónios; aparências de bestas selvagens e répteis, espetros de leões, ursos, leopardos, touros, serpentes, áspides, escorpiões e lobos enchiam o recinto».
O tríptico data provavelmente de 1505. Foi pintado em pleno Renascimento. Tanto esta obra como «O Jardim das Delícias» fazem a ponte, ou a transição, entre o imaginário medieval bem presente ainda na Europa e as influências renascentistas que iam ganhando terreno nas artes. 


As tentações começam no painel que fica à esquerda de quem olha. Em cima, o santo é arrastado aos ares pelos demónios. A meio, enfraquecido, é amparado por figuras piedosas. A parte mais interessante do painel está em baixo.



Há demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um  monstro patina no gelo para entregar outra. Bem gostava de saber o que diziam as missivas. Poderiam anunciar o fim dos nossos dias.


O painel da direita mostra uma mulher despida a tentar o santo. Antão desvia o olhar para o outro lado e lá estão outros seres maléficos a tentar conquistá-lo com comida e bebida.



 Ao alto, voa um peixe que transporta um casal.



No painel central vê-se um templo cilíndrico, em ruínas, com a figura de Cristo crucificado no seu interior. Ao fundo, arde uma aldeia.



As partes média e inferior do quadro são ocupadas por figuras diabólicas grotescas, em parte humanas e em parte compostas por animais, plantas ou objetos. 


É o painel central que transmite a mensagem essencial da obra. Estamos rodeados pelo mal.


Só com a renúncia às coisas do mundo e com a ajuda de Cristo se pode alcançar a salvação.




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