sábado, 12 de julho de 2014

   

                            A MINHA AVÓ




Toda a gente tem, ou teve duas avós. A única exceção possível é o nascimento duma relação incestuosa entre pai e mãe. Todavia, “a minha avó” é a avó Amélia. Da avó Delfina, pouco lembro. Recordo apenas que me oferecia rebuçados que ela própria fazia.
Tanto quanto se sabe, na minha família os homens não eram parvos. Casavam-se, relativamente tarde, com raparigas novas. Esse facto aliava-se à conhecida longevidade feminina para inscrever viúvas no rol dos antepassados. Conheci as duas avós, uma bisavó e uma tia-avó. Dos avôs, sei apenas o que me contaram. Morreram antes do meu nascimento.
A minha avó Amélia chamava-se Elvira. Lá estou eu a brincar… O seu nome completo era Elvira Amélia Folgado. Fiquei com o “Sancho” do meu avô João. Provavelmente, “Folgado” assentava-me melhor.
Os meus quatro irmãos mais velhos (dois homens e duas mulheres, felizmente vivos e relativamente saudáveis) têm o meu pai por figura tutelar e até totémica. Talvez por o ter deixado cedo (17 anos) nas alturas do Lubango, a minha grande referência familiar é a avó Amélia.
É dela que falo mais aos meus netos. Há de persistir na memória deles muito tempo após o meu passamento. É que, digam o que disserem os crentes, não existe outra vida além desta e um homem morre de vez quando desaparece da face da terra a última pessoa que guarda recordações (boas ou más) dele.


Dizem que a minha avó, na juventude, era bela. Dela (e do avô do outro lado) provêm os olhos claros que predominam na minha descendência. Falava do marido com carinho mas, quando o padre lhe perguntou esse era de sua vontade casar com João Sancho, respondeu com um rotundo “não!” 
     Lá lhe deram a volta. Contava-me, três quartos de século mais tarde:
Naquele tempo eu queria era brincar com bonecas…


Reaprendi a conhecê-la quando voltei para Portugal. Passava em Almendra as férias de verão. Bem gostaria de estar umas semanas numa praia, mas a minha bolsa de estudos não dava para isso.
Quando a minha mãe morreu, recebeu-me ainda com mais carinho. Declarou:
Agora, sou duas vezes tua mãe!
Por essa altura, a avó Amélia já entrara havia algum tempo na nona década da vida. Via mal, estava meio surda e deslocava-se com dificuldade, inclinada para a frente.
Eu achava que já era homem. Quando me julgava adormecido, ela deslocava-se até ao meu quarto (“toc, toc, toc”) e ajeitava-me os cobertores. Sabia bem…
Pelos vinte anos, arranjei uma namorada na Queima das Fitas. Reprovei a uma cadeira, pela única vez na minha vida e perdi o ano. A avó não me fez críticas. Deixou-me andar por ali durante três semanas, como se nada se tivesse passado. Ao fim desse tempo, chamou-me e disse:
Agora, toca a estudar!
Eu era um aluno razoável e ela tinha certo orgulho em mim. Quando me licenciei, ficou contente.
Este ano, em Almendra formaram-se três doutores, filhos de três doutores…
Sabe-se o que valem os títulos, se não tiverem conteúdo que os alimente. Jorge Amado que o diga…
A minha avó era uma pessoa resistente e viveu mais tempo do que todos os amigos e inimigos.  Já perto do fim da vida, incompatibilizou-se com um vizinho, por causa da divisão dum pequeno terreno a que nenhum dos dois tinha direito. Insultava-o:
Aquele miúdo! Aquele fedelho!
O fedelho era o homem mais velho da terra e ia nos 93 anos. A avó Amélia nascera três anos antes.
Nunca ia ao médico e tinha a aguardente por única mezinha. Aquilo servia para tudo: dor de dentes, reumatismo, mal de estômago… Não abusava da medicação, pois o equivalente a uma garrafa de cerveja dava-lhe para todo o ano.
Com 98 anos feitos, sofreu um acidente vascular cerebral. Ficou retida na cama e demenciada. Era o tempo dos emigrantes, que vinham passar férias a casa e a que chamavam “franceses”. Integravam os pesadelos da avó.
Quando eu voltava a Almendra, repudiava-me:
− Quem é o senhor? Que está aqui a fazer?
− Avó! Eu sou o Toneca… (era assim que me chamavam e ainda me chamam os meus irmãos).
− Não é nada! O senhor é um ladrão, um francês!
O estado de consciência flutuava:
− Mas se fosse o Toneca, quantos beijos e quantos abraços eu lhe daria…
Chorei, vezes sem conta, ao contar este episódio. Serve-me de exemplo para afirmar que, em certos casos, o amor dura mais do que a razão.
Esta é uma das histórias que, possivelmente, os meus netos irão passar aos netos deles.



Sem comentários:

Enviar um comentário