quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

 OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH

                  AS CARTAS



O Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa tem o privilégio de acolher as «Tentações de Santo Antão», um dos quadros emblemáticos de Bosh. O tríptico veio do antigo Palácio Real das Necessidades. Ninguém sabe como lá foi ter. Há quem diga que pertenceu ao humanista Damião de Góis. Desloquei-me até lá algumas vezes, para apreciar a pintura.

Nessa manhã, instalei-me de novo face ao quadro. Achei que era uma pena não existirem cadeiras em alguns lugares do museu.

Antão era um eremita egípcio do século III, considerado o fundador da vida monástica. Fora muito popular na Idade Média, sendo considerado protetor contra o ergotismo, doença provocada pela cravagem do centeio. O santo é muitas vezes representado na companhia de um porco. Comer mais carne e menos pão diminuía a probabilidade de contrair a doença.

Santo Antão distribuiu os seus bens pelos pobres e passou vinte anos a meditar no deserto, o que provocou a ira do diabo, que o tentou de todas as formas imagináveis.

Bosh retratou, a seu modo, as tentações a que o pobre santo foi exposto. Rodeou-o de monstros e demónios assustadores.

As tentações começam no painel que fica à esquerda de quem olha. Em cima, o santo é arrastado aos ares pelos demónios. A meio, enfraquecido, é amparado por figuras piedosas.

A parte mais interessante do painel está em baixo. Há demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um monstro patina no gelo para entregar outra.

Bem gostaria de saber o que diziam as missivas.

Nos últimos tempos, deu-me para imaginar conversas com as figuras dos quadros. Preocupo-me pouco com esta minha tendência. Sei que não estou doido. Distingo bem o mundo real do congeminado. Afinal de contas, isto não passa de um jogo.

Sem mover os lábios, dirigi-me ao monstro corcunda de funil na cabeça que transporta uma carta no bico.

− Sabes o que é que está aí escrito?

− Tens alguma coisa com isso?

− Ter, não tenho, mas venho aqui com frequência. Cada vez que te vejo patinar, fico mais curioso.

− A curiosidade matou o gato. Além disso, tu não és dos nossos…

Eu não tinha argumentos para contrariar a imagem com quem discutia.

− Tens razão. Pertenço a outro mundo.

− Sabes pintar?

− Não. Nunca fui bom no desenho, no tempo em que andava na escola.

− Então, não há nada que eu possa fazer por ti. Adeus…

− Vou-me já embora… Ao menos, diz-me o que vem na carta…

− És tonto! Não vês que eu não sei ler?

Nessa altura, o monstro rodou levemente a cabeça na minha direção, abriu um pouco o bico e disse baixinho:

− Pergunta ao santo. Ele é que sabe tudo.

Voltei-me para o painel da direita, sem vontade de fazer mais perguntas. Vê-se lá uma mulher despida, a tentar Santo Antão. A dama não tem grande aspeto físico. Fiquei a pensar que o diabo, apesar da sua experiência de milénios, não entende a beleza feminina. Sem o pretender, aligeira os caminhos da santidade.


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