quinta-feira, 12 de outubro de 2017


A NARRATIVA TELÚRICA
   EM ESCRITORES MÉDICOS TRANSMONTANOS

      A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA E BENTO DA CRUZ

     III




Voltemo-nos agora para Bento da Cruz.
Bento Gonçalves da Cruz nasceu na aldeia de Peireses (Montalegre, Trás-os-Montes), em 1925 e faleceu no Porto, em 2015.


18 anos mais novo que Torga, teve uma vida longa e produziu uma obra literária extensa. Publicou 14 livros de ficção (entre romances e contos), 3 estudos biográficos e 3 volumes de crónicas.
Na sua obra central, o Planalto de Gostofrio, descreveu ao pormenor o trabalho infantil a que foi sujeito, colaborando para o sustento da família na pastorícia e na rega dos campos.
Aos quinze anos, ingressou na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges beneditinos, e ali estudou durante seis anos. Durante esse período, dirigiu duas revistas estudantis.
Dois anos mais tarde, matriculou-se em Medicina, em Coimbra.
Já médico, exerceu clínica geral e estomatologia na região do Barroso. Acabou por se fixar no Porto, em1971.
Em 1974, fundou o jornal «Correio do Planalto», que dirigiria até perto do final dos seus dias. Reuniu as crónicas que ali publicou sobre a região natal nos três volumes dos «Prolegómenos», que recordam a aldeia da sua infância e narram histórias antigas.
 Para preparar este texto, apoiei-me no Planalto de Gostofrio, um romance de inspiração autobiográfica recheado de imagens poéticas, nas Histórias da Vermelhinha, uma coletânea de contos recolhidos da tradição rural do Barroso e em dois volumes dos Prolegómenos.


A escrita de Bento da Cruz é alegre e fácil de ler.

Gostofrio (Peireses) tem crescido comigo. É hoje uma aldeia com ares de burgo, mas ainda me lembro dela de tamancos e burel, toda negra nas casitas de colmo e pedra bruta, sem o menor fogacho de telha ou desmaio de cal. Os sobrados contavam-se pelos dedos e, todos juntos, não somariam tantas janelas de vidraça como dias tem o mês.

Peireses tem um anel de montanhas à volta. Nos dias de sol, as montanhas afastam-se e o mundo é grande. Nos de vento e chuva, as montanhas apertam o cerco, o mundo é pequeno e as pessoas sentem um constrangimento de angústia no coração.


Bento da Cruz escreveu, no Prefácio de Histórias da Vermelhinha:
A fauna desses caminhos do Senhor era um espetáculo variegado e ininterrupto: lavradores que subiam da Ribeira com a carga do vinho ou de Ruivães, com a carga do sal; almocreves de ou dois machos que mercadejavam em tudo e morriam pobres; mendigos com alforges nem sempre cheios de esmolas, mas sempre repletos de desilusões; ciganos, olho vivo, mão ligeira, buena dicha, contrabandistas de fardo às costas e pé furtivo; galegos escachapernados em montes de peles e boas mulas; saltimbancos dos sete instrumentos e setenta artimanhas; ourives ambulantes de baú a tiracolo e credo na boca… …feirantes, romeiros, cumpridores de promessas, pedintes para a «casa ardida»;

Assim como nenhum espadachim saía à rua desarmado duma boa espada, também nenhum barrosão viajava desprevenido dum bom lodo.

Esquematicamente, poderíamos dizer que os nossos avós se vestiam de burel no inverno e de linho no verão. Do que a terra dava e a dona fiava.
De linho era toda a roupa interior, os lençóis e travesseiros da cama, as toalhas de rosto e da mesa, os sacos de farinha e do grão, os alforges da burra. De lã de ovelha as capas, as calças, as saias, os coletes, os saiotes, os aventais, os carpins, as meias, as polainas, as mantas e os cobertores.

Tendo em comum o amor profundo à terra natal, Miguel Torga e Bento da Cruz, sentem o telurismo de formas diferentes.
Em Torga, o sentimento telúrico é dramático e quase obsessivo. A terra é o ventre materno, é a deusa procriadora. Torga tem saudades de si próprio.
Tal como Torga, Bento da Cruz sente necessidade de se revigorar no contacto periódico com a terra mãe. É, contudo, um otimista. Bento da Cruz tem saudades do passado. Procura preservar a sua memória nos seus escritos.

Para o diabo os pensamentos tristes. Eu fico-me com esta beleza. Com este solo atapetado de folhas, esta irradiação de luz que sobe pelas árvores e ilumina o firmamento.
Com a graciosidade de uma carvalha de copa mais aparada e redonda que jarra de centro de mesa e um círculo de folhas na relva como a sua imagem refletida na colina. Com as cabriolas de um gato amarelo que afia as garras na ervagem seca e rosna como a dizer-me: agarra-te à vida; não te deixes ir abaixo.

Em ambos, o contacto com a terra mãe, com as origens, renova o vigor do homem. É, no essencial, o mito de Anteu. Anteu era filho de Poseidon, deus do mar, e de Gaia, a terra. Anteu era um gigante malvado e extraordinariamente forte com os pés assentes na terra, sua mãe, mas que perdia as forças se fosse levantado no ar. Foi derrotado e morto por Hércules, que o sustentou nos braços, impedindo-o de poisar no chão.



Este bronze é de António de Poillaiolo, pintor, escultor e anatomista, 20 anos mais velho que Leonardo da Vinci.

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