terça-feira, 10 de outubro de 2017

                   
  A NARRATIVA TELÚRICA
   EM ESCRITORES MÉDICOS TRANSMONTANOS

      A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA E BENTO DA CRUZ

       I

O conceito de narrativa telúrica, ou de telurismo literário, é sul-americano. É pouco referenciado na cultura europeia.
O sentimento telúrico é a consciência da aliança natural do homem com a terra, o respeito pelas forças da natureza e a aceitação da influência que o solo natal exerce nos costumes e no caráter dos seus habitantes. Veremos adiante como a sua presença é bem viva na obra de escritores médicos transmontanos. A novela telúrica configura uma moral própria, com um código de conduta adequado ao mundo.


O telurismo parece ter nascido na Colômbia. Eduardo Pachón Padilla, notável crítico literário colombiano falecido em 1995, organizou uma antologia de contos, sucessivamente revista e aumentada. Elaborou também uma teoria sobre a relação do homem hispano-americano com o elemento telúrico. No seu modo de ver, a Europa privilegiou a história, o humano, enquanto a América deu lugar à geografia, ao território. A novela hispano-americana refletiria o processo de adaptação do homem ao ambiente que o rodeava e o respeito pelo poder da natureza indomada, a qual iria, aos poucos, modelando o seu temperamento e os seus hábitos. As fronteiras literárias não são tão nítidas como as dos continentes e as influências telúricas estão bem presentes em escritores europeus.
A novela terrígena, novela da terra, ou telúrica, foi assim chamada porque a terra era protagonista dela. Terá nascido com José Eustasio Rivera, também colombiano.


“La voragine”, publicada em 1924, é considerada por muitos a primeira novela genuinamente americana, após séculos de dominação da literatura europeia. A “agressividade maligna e misteriosa da selva tropical” lançaria o homem contra o homem.
A Rivera seguiram-se o argentino Ricardo Güiraldes, que publicou em 1926 o romance Don Segundo Sombra, uma história sobre a decadência dos gaúchos e o venezuelano Rómulo Gallegos, cuja obra fundamental, Dona Bárbara, saiu em 1929.


Curiosamente, Gallegos chegou a ser presidente do seu país. Foi eleito por voto secreto e universal, mas exerceu o mandado durante menos de um ano, tendo sido derrubado por um golpe militar. Foi um dos primeiros novelistas sul-americanos a granjear fama universal.
No espaço andino, e em particular, na Bolívia, Peru e Equador, a literatura da terra ganhou características especiais quando se envolveu na questão dos índios. Deu origem a um movimento literário, ideológico e político bem definido que ficou conhecido como “indigenismo”.
Desse caldo de culturas, nasceria o realismo mágico, de Miguel Ángel Asturias e Gabriel Garcia Marques. O realismo tradicional foi enriquecido com lendas e elementos mágicos e fantásticos.
A novela telúrica desenvolveu-se de 1920 a 1945. Cronologicamente coincidiu, em parte, com o neorrealismo europeu, que emergiu do modernismo para dar seguimento, de uma forma nova, ao realismo e ao naturalismo do século XIX. 


O neorrealismo literário desenvolveu-se entre os finais dos anos 30 e os 50. Em Portugal representou uma revolta intelectual contra o salazarismo e assentou largamente na cultura marxista. Curiosamente, além da influência literária italiana, agregou uma componente brasileira, iniciada por Graciliano Ramos e José Lins do Rego, que denunciava as injustiças sociais no nordeste do Brasil. No nosso país, nasceu em 1940, com Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol e continuou com Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio e outros, entre os quais o nosso colega Fernando Namora. 
As sensações que suportam a literatura telúrica são demasiado fortes para se espartilharem em correntes literárias. Quem as procurar, há de encontrar indícios delas em continentes e épocas diversas. Em contacto com a natureza, os homens estabeleceram há muito as regras e o saber que possibilitavam a paz interior e exterior.

                                                                     (Continua)

1 comentário:

  1. Estou lendo agora “Manuelzão e Miguilim”; novela escrita por João Guimarães Rosa e considerada por seu editor uma narrativa telúrica. Obrigado por esclarecer esse conceito.

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