domingo, 12 de março de 2017

CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO




XXVII

“No tempo em que os animais já não falavam no resto do mundo, ainda se ouviam em Angola”.

O Tio Cardoso bebia uns copitos a mais, é verdade. Só incomodavam a Tia Angelina, que se fartava, em vão, de ralhar. Para nós era fixe. Quando estava com o grão na asa era divertido, brincava connosco como um garoto.
Trabalhava nos Caminhos de Ferro, era revisor. Dava a ordem de marcha, controlava as cargas e as descargas, os passageiros, etc.
Antes de chegar a Moçâmedes, a última paragem importante era o quilómetro 78, Caracul. Como já não tinha mais nada a fazer dali para diante, enfiava-se no bagaço. Quando lhe perguntavam  por que bebia aquilo numa zona onde o calor era demais, ele respondia:
− A mordedura dum cão cura-se com o pelo do próprio cão.
Era sempre o chefe da estação que o ia acordar no fim da viagem, dizendo-lhe:
− Acorda, Cardoso. A linha acabou aqui.
Acordava, barbeava-se ali mesmo na carruagem e chegava a casa fresquinho, como convinha.
O mano Nando, numa das férias grandes, domesticou um periquito, daqueles verdes com a cabeça vermelha, os republicanos, por culpa das cores. Foi uma oferta do Tamegão que estava muito agradecido por lhe ter ensinado a escrever o nome. O periquito foi apanhado com o visgo da mulemba que o próprio Tamegão sangrou.
Acabadas as férias, o Nando regressou a Moçâmedes mas esqueceu-se de levar o periquito. Em todas as cartas que escrevia à mãe pedia-lhe que o mandasse o  mais depressa possível.
Mas como?
Minha mãe decidiu:
− Carlitos, vais a Moçâmedes no comboio da quinta-feira, que o revisor é o tio Cardoso, e levas o periquito ao teu irmão.
Fiquei radiante, ia dar um passeio e, melhor do que isso, faltava dois dias às aulas.
Lá fui com o bichinho ao ombro também.
Quilómetros depois, não sei como, voou e foi pousar na cobertura da carruagem.
Via-o a tremer, talvez pela deslocação do ar ou, não sei, com medo de cair. Devia ser pela segunda hipótese, porque estávamos em zona desértica e ele devia pressentir que a única comida que havia ali era areia.
− Tio, o periquito fugiu, está em cima da carruagem.
− Tu consegues vê-lo?
− Consigo.
− Então mostra lá.
Examinou a situação e disse:
− Não há nada a fazer, se ele se quiser safar que se agarre.
− Mas, tio, o periquito é do Fernando.
Joguei forte porque sabia que ele tinha um fraquinho por ele e, ainda por cima, era seu afilhado. Ficou calado. Momentos depois, como que falando para si próprio:
− Ai, tens que te agarrar, tens.
Veio-me uma ideia luminosa:
− Tio, tu podes mandar parar o comboio.
− Boa, nem tinha pensado nisso.
Pegou na bandeira vermelha, colocou-a fora da janela e o comboio parou.
Em Angola, até os periquitos faziam parar os comboios.



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