domingo, 19 de março de 2017


CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO

XXIX



“Naquele tempo, a música era a preto e branco.”

Em Vila Arriaga, só há duas ruas, separadas pela linha do comboio.
A primeira, ao lado da Administração, era a mais estimada. Uma fileira de laranjeiras, ao meio, a enfeitava. O piso estava sempre impecável.
Nas entradas, duas placas: “Avenida Manuel de Arriaga.”
Na rua do outro lado, alguém se aproveitou do escuro da lua nova e plantou também uma: “Picada Manuel de Arriaga.”
Por ironia do destino, era na segunda que se desenvolvia o melhor comércio com os indígenas.
Por sorte, a Estação ficava de frente para ela. Víamos, a qualquer momento, a hora certa no seu enorme relógio.
A meio da tal picada vivia aquele que, por seu meu pai, eu quero homenagear.
Foi o pioneiro em tudo: o gramofone de agulhas substituíveis, com um prato que fazia rodar o disco de vinil, era dele. Abrilhantava os nossos bailes. Certa noite, quando eu já ia iniciar a terceira dança seguida com a mesma miúda, atrevi-me a dizer-lhe:
− Preciso de te falar duma coisa…
Maliciosamente, ela comentou, dando-me uma abertura:
− Já tinha reparado nisso, fala à vontade.
− Quero dizer que te a…
Não acabei a frase. A corda do gramofone partiu-se.
O frigorífico a petróleo de torcida que era preciso, de vez em quando, acertar com uma tesoura, para evitar a fumarada, era o único da vila.
Em dias de aniversário, em qualquer outra família, a champanhe era refrescada nele.
O carro Ford – calças arregaçadas – foi o primeiro que se viu circular por ali. Também era dele. Tinha de levar sempre o ajudante para dar à manivela. A primeira operação era abrir o estrangulador para forçar a entrada de ar e se iniciar a combustão. A gasolina que usava era trazida pelo comboio de sexta-feira.
Quantas vezes teve de levar doentes às urgências do Hospital do Lubango, quase sempre no melhor do sono da madrugada…
Por culpa dessa mania, o meu pai foi também o primeiro a ter um rádio. Era um Bosh de grande tamanho, accionado pela bateria do carro. As válvulas tinham que aquecer, cerca de cinco minutos.
Aos Domingos ligava o rádio, abria todas as portas e janelas, levantava ao máximo o som, para dividir com toda a população o privilégio que não queria só para si.
Quando aparecia por ali, talvez de propósito, gente negra aos magotes, convidava-os, em quimbundo, a ouvirem o rádio.
− Tchicuta Macongo!
Sentados no chão da picada, escutavam lindas melodias.
Depois, todos batiam palmas e, a uma só voz, diziam:
− Obrigado, Tchicuta Macongo. Obrigado mesmo!





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