quinta-feira, 2 de maio de 2013


                      AMÍLCAR CABRAL          

                                           XXI

              O CONSULADO DE SPÍNOLA




As características geográficas do território e a unidade e organização da guerrilha obrigaram os comandos militares portugueses a colocar na Guiné um número de soldados em clara desproporção com a superfície da colónia e o número dos seus habitantes. De um total de 79.823 efetivos militares metropolitanos que se encontravam em 1968 nos três Teatros de Operações, 37.547 estavam colocados em Angola, 22.717 em Moçambique e 19.559 na Guiné. Os números totais de soldados mortos nas três frentes, entre 1961 e 1974 foram de 3.258 em Angola, 2.962 em Moçambique e 2.070 na Guiné.
Em Maio de 1968, Schultz foi substituído. Teve início o consulado de Spínola.
António de Spínola encarava de maneira diferente a guerra de guerrilha. Tinha lido o Livro Vermelho de Mao Tsé Tung e outras obras populares entre os nacionalistas e os estudantes universitários europeus de  esquerda.
Procurou combinar os aspetos militares e sociais. Não seria preciso inovar, mas apenas adaptar os conhecimentos e experiências de outras guerras de guerrilha à realidade geográfica e social da Guiné.
O objetivo era criar uma ligação de simpatia e mesmo de gratidão entre o exército e a população. Spínola contava com um grupo de oficiais preparados para a guerra antissubversão em Lisboa e em estágios efetuados nos Estados Unidos e em vários países europeus da NATO. Tratava-se de militares corajosos, empenhados e ambiciosos: Carlos Fabião, Otelo Saraiva de Carvalho, Manuel Monge de Lima, Nunes Barata, José Blanco, Jorge Moreira da Costa, Carlos Azeredo e outros. Ficaram conhecidos como os rapazes de Spínola. Foi com eles que o general elaborou a sua estratégia de combate.
As forças armadas deixaram de ter um papel exclusivamente militar. Deviam também colaborar com as populações nas áreas da assistência sanitária e do ensino. A guerra da Guiné era essencialmente psicológica. Passava pela conquista das almas, a qual não poderia ser feita pela força mas sim pela persuasão. A ação de contra subversão visava afastar as populações dos movimentos de libertação, de modo que deixassem de apoiá-los.
Tal como tinha feito Amílcar Cabral, Spínola estudou a composição étnica dos povos da Guiné. Acabou por ser traçado um mapa colorido do território. As zonas azuis indicavam a presença de populações favoráveis aos portugueses. Eram sobretudo fulas e viviam a leste. As áreas vermelhas estavam controladas pelo inimigo, enquanto as amarelas eram áreas de transição e de equilíbrio instável entre as forças em luta. Para fins de bombardeamento, não havia distinção entre civis e militares nas regiões vermelhas.
Nas áreas azuis eram construídos os aldeamentos estratégicos semelhantes aos que ficaram famosos na guerra do Vietname. Eram para lá conduzidas as populações que o exército pretendia cativar. Esta estratégia desertificava territórios amplos, facilitando as operações de busca e destruição, geralmente efetuadas por tropas especiais helitransportadas.
No campo político, o general português procurou explorar as fraquezas e as contradições inerentes à formação do PAIGC. Estimulou o ódio aos cabo-verdianos e procurou obter a simpatia de alguns setores da população, como os muçulmanos (em especial os fulas) que constituíam a maioria religiosa do país e nunca tinham apoiado decididamente Amílcar Cabral. Lançou um projeto ambicioso, designado “Por uma Guiné melhor”. Destinava-se a compensar, em parte, o abandono a que os sucessivos governos de Lisboa tinham votado a sua colónia na África Equatorial.
A fatia que o Orçamento do Estado Português dedicava à Guiné engordou substancialmente. Foi possível abrir estradas novas. Alcatroaram-se 500 quilómetros das já existentes. Levantaram-se pontes e melhoraram-se as condições de funcionamento de alguns portos. Construíram-se 8.000 habitações e melhoraram-se seis dezenas de tabancas (aldeias). A rede escolar e as estruturas sanitárias que serviam a população foram objeto de uma atenção desconhecida até à data. Como aconteceu simultaneamente e em escala maior em Angola e Moçambique, a guerra tornou-se um fator de desenvolvimento do território.
António de Spínola estava atento ao que se passava no mundo. Aprendeu também com os teóricos ingleses e franceses da fase tardia da descolonização.
A melhor maneira de conter os nacionalismos africanos nascentes não consistia em europeizar as populações, integrando-as nas legislações nacionais e atribuindo-lhes direitos e deveres semelhantes. Era preferível enquadrá-las nas estruturas tribais reabilitadas.
Spínola procurou dignificar a autoridade tribal e inventou o Congresso dos Povos da Guiné. Em 1970, o primeiro Congresso reuniu representantes de fulas e mandingas. Reconhecendo a justeza das reivindicações mandingas, foi-lhes permitido eleger os próprios régulos, em lugar dos chefes fulas impostos pela administração colonial. Era a primeira vez que tal acontecia no chão mandinga de Farim – Oio. No ano seguinte, o Congresso abriu as portas a todas as etnias. 
Spínola implementou na Guiné um conceito quase global de guerra. Aos componentes civil e militar eram atribuídas importâncias quase iguais.
 No começo da sua governação, o PAIGC sofreu alguns reveses. Foram retiradas populações à guerrilha. Os combatentes nacionalistas viram o seu escudo humano reduzido.
 Os bombardeamentos tornaram-se mais fáceis e boa parte das estruturas trabalhosamente construídas pelos guerrilheiros nas zonas libertadas foram destruídas. O Exército Português abandonou posições isoladas e difíceis de abastecer, como Madina do Boé, e concentrou os seus efetivos nas aldeias fortificadas e nas grandes povoações. Durante algum tempo, a situação militar esteve equilibrada.
 A pressão diminuída sobre as forças armadas portugueses assentava, em parte, em fissuras sociais que se projetavam na guerrilha. Começou a questionar-se a continuação do esforço de guerra e aumentou consideravelmente o número de deserções.
   Estavam abertas as portas para a negociação política.


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