terça-feira, 16 de março de 2021

 

  CONTOS DE HERTOGENBOSCH


  ANDEI PERTO DO CÉU




Há imprudências que nem em sonhos se devem cometer.

Andei perto do céu e quase me perdi.

Eu era jovem e tolo. Usava a imaginação para me deslocar para onde bem entendesse. Esse meu pequeno dom servia-me de escada para me elevar acima dos companheiros de escola e do trabalho. Dali à soberba, distariam poucos degraus.

Fui procurando chegar cada vez mais alto e avizinhei-me da vertigem. Alguma vez acabaria por tropeçar.  

Certa noite, penetrei num quadro de Bosch e dispus-me a acompanhar Santo Antão, o eremita, que fora levado pelos demónios para cima das nuvens.

O Santo suporta tudo. Deixou-se arrastar por sapos e lobisomens para um universo fantástico onde o céu se confundia com o mar. Para os menos avisados, devo referir que falo do painel esquerdo das Tentações de Santo Antão.

À direita e um pouco abaixo dele, um pequeno monstro arredondado mergulha. Arrasta para o fundo uma foice de cabo longo, semelhante às que a tradição medieval associava à Morte. Enquanto desce, bufa-se.

Um espetro cavalga um peixe grande e abraça outro. Dificilmente irá longe sem tombar.

Em cima e à direita, desenha-se uma cena de pesadelo. Paira no ar uma barca suportada por peixes monstruosos. Outro peixe de aspeto feroz parece querer abocanhar o cavername. A bordo, um tonto despido vira o traseiro para o Santo. Está todo dobrado e tem a cabeça entre os joelhos.

O único tripulante, sentado à ré, tenta inutilmente soltar uma âncora.

O Santo combate o Mal como sabe: rezando. Impávido, nem sequer deixa que a capa lhe escorregue dos ombros.

Foi aí que eu pretendi modificar o quadro. Fui sempre impulsivo e pouco respeitador. Deu-me para puxar a capa de Santo Antão. Era uma espécie de desafio. Achava que o manto o ajudava a resistir às tentações e tive curiosidade em saber como iria reagir, se lho tirasse.

Não cheguei a concretizar a ideia. Senti um puxão no ombro e fui obrigado a voltar repentinamente para trás, o que me fez acordar. Estou quase certo de que foi o meu Anjo da Guarda quem me livrou do Mal.

Andei perto do céu e não gostei de lá estar.


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