quarta-feira, 8 de maio de 2013



                           AMÍLCAR CABRAL    
    

                           XXVII


 UM OLHAR SOBRE A DESCOLONIZAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU

             (ARTIGO APOIADO NUM TEXTO DE CARLOS FABIÃO)





Amílcar Cabral foi capaz de reunir em redor de uma quimera os movimentos nacionalistas das colónias portuguesas da Guiné e de Cabo Verde. Quem morre cedo presta-se a forjar lendas. Cabral foi um líder determinado, esclarecido, inteligente, disciplinado e disciplinador, com elevadas preocupações humanitárias. Sem nunca fazer concessões ao culto da personalidade, acabou por construir uma imagem maior que a própria estatura.
No xadrez da História, o governo português foi-lhe opondo adversários sucessivos. O general António de Spínola terá sido o mais destacado de todos. Ainda assim, nada ganhou. No campo militar, venceu batalhas e perdeu a guerra. No aspeto político, teve razão antes do tempo, mas o tempo retirou-lhe depressa a razão. Inovador na abordagem do processo de descolonização portuguesa, foi rapidamente ultrapassado pela vertigem dos acontecimentos. Foi Presidente da República Portuguesa quando a maioria dos seus concidadãos pretendia já outros chefes. Dois anos após a sua publicação, o seu livro “Portugal e o futuro”, que ajudou a abrir os olhos da História a muitos militares de abril, poderia já intitular-se “Portugal e o passado”. Spínola teve um destino que se pode comparar ao de alguns treinadores de futebol. Não passou de bestial a besta, mas foi considerado progressista num dia e reacionário poucos dias depois.
Não deixa de ser curioso reproduzir a opinião de Carlos Fabião, um dos seus centuriões por altura do consulado na Guiné e seu opositor, por opinião e por inerência de funções, quando o rebelde Spínola o chamou a Tancos. Comecemos por lembrar um fragmento duma entrevista concedida por Fabião ao jornal Público e conduzida por Maria João Avilez.

P. - Qual foi a sua reação aos acontecimentos do 11 de março?
R. - Eu não sabia o que se estava a passar - estava no meu gabinete a falar com o Lemos Pires, que viera cá tratar dos assuntos de Timor. De repente, entram no meu gabinete o Mendes Dias e o Lemos Ferreira dizem-me que o general Spínola estava em Tancos e pedia para eu lá ir. Respondi que não iria e disse ao Mendes Dias - na altura chefe do Estado-Maior da Força Aérea - que ele também não deveria ir. Mas os nossos dois chefes de gabinete foram.
P. - Achou que não deveria ir. Porquê?
R. - Repare nisto: o general Spínola, fechado numa base, manda chamar o chefe do Estado-Maior do Exército, ou seja eu próprio. Ora eu, naquele momento, não estava em condições de me meter numa coisa sem saber o que se passava. Mandei ver o que era, disseram-me que o general Spínola me queria ao seu lado quando entrasse em Lisboa. Fui então perguntar ao Costa Gomes o que se passava e optei por ficar na dependência dele.
P. - Permita-me então que lhe pergunte: nesse momento troca objetivamente o general Spínola pelo general Costa Gomes? Ou tratava-se simplesmente de um problema de disciplina militar?
R. - Mantive-me dentro da minha linha hierárquica.

O bom senso e o respeito pelos valores militares são duas características geralmente reconhecidas a Carlos Fabião. O seu posicionamento ao lado do general Costa Gomes ajudou a evitar em Portugal a tragédia da guerra civil. Apesar das divergências políticas com António de Spínola. Fabião recordou-o sempre como o chefe e o amigo. O artigo que publicou sobre a descolonização da Guiné-Bissau ilustra bem o seu modo de ver. 

Visto do lado português, o Marechal António de Spínola foi, sem qualquer dúvida, a figura central da guerra da Guiné… … Antes e depois de Spínola, tudo mais não foi que uma «apagada e vil tristeza» …
… Logo nos primeiros tempos das hostilidades, Portugal perdeu o controlo do sul e do centro-oeste da colónia. Conservou o domínio da região leste, graças ao facto da etnia fula se ter mantido fiel à soberania portuguesa; do «chão manjaco», incaracterístico, sem se afirmar por nenhuma das partes em confronto e da ilha de Bissau, como era natural dada a concentração de forças militares ali existentes.
O novo Governador e Comandante-Chefe promoveu uma reunião em Bissau, no palácio do Governo, de todos os Comandantes de Unidades e Subunidades dos três ramos das Forças Armadas em serviço na Guiné. Nessa importante reunião, Spínola esboçou o seu plano de ação definindo, com muita clareza, os seguintes pontos:
- uma guerra subversiva não se ganha militarmente;
- portanto, ele não ia pedir aos militares que a ganhassem, ia apenas pedir-lhes que a não perdessem;
- a vitória essa teria de ser conseguida pelo governo no campo político.
Com base nestes princípios, foram redefinidas as missões militares de todas as Unidades e subunidades do teatro operacional, de acordo com as suas reais possibilidades. A manobra militar passou a ficar estreitamente subordinada à manobra sócio/política, sendo dada a esta uma alta prioridade…  
… O Marechal tinha também um projeto nacional para vencer o impasse a que o país chegara com a institucionalização da guerra. Esse projeto admitia que a unidade se podia conservar por uma reestruturação nacional fortemente descentralizada que tomasse na devida consideração a heterogeneidade do todo português…
…A estratégia que Spínola montou na Guiné foi um reflexo deste projeto, ao qual ficou, desde o início, subordinada. Ela consistia numa acelerada promoção sócio/económico/cultural de todas as populações tribalizadas, dentro das respetivas estruturas convencionais, de modo a fazer ascender todos os grupos étnicos, paralela e simultaneamente numa mesma direção, de modo a atingirem uma plataforma comum a que se convencionou chamar portugalidade…
… Os Congressos do Povo da Guiné institucionalizavam, de certo modo a divisão étnica dos guineenses, mas permitiam auscultar as insatisfações, os desejos e os anseios das populações nativas, procurar entender os mecanismos que as motivavam e informar o governo dos seus erros próprios e dos cometidos pelos seus agentes e ainda dos choques da lei portuguesa com o direito tradicional dos povos…
 …Dentro da sua estratégia, Spínola procurou estabelecer o diálogo com o opositor. Militarmente criou as condições que lhe permitiam aceitar o diálogo numa posição cómoda; conservou o controlo do leste e impediu a sublevação do «chão» manjaco.
 O Marechal tinha a plena consciência que o problema da Guiné não era possível de resolver sem o PAIGC. Mas esta tentativa não ia ser fácil de realizar. Spínola conseguiu interessar no caso o Presidente Senghor do Senegal, que se prestou a servir de intermediário.

Em 1971, Léopold Senghor informou António de Spínola que Amílcar Cabral estava disposto a encontrar-se com ele em Bissau para negociar a autonomia da Guiné.
O governador-geral da Guiné pediu, por escrito, ao primeiro-ministro português autorização para o encontro. Alegou que, se a oportunidade não fosse aproveitada, Portugal poderia perder a situação transitória de vantagem militar. Era conveniente negociar em posição de força. Marcello Caetano recusou.
A Operação Mar Verde tivera lugar em Janeiro de 1970. Fragilizara a imagem de Portugal no mundo e reforçara a posição dos nacionalistas.
Em Maio de 1972, Spínola e Senghor encontraram-se num complexo turístico de Casamance, a sul do Senegal.
Carlos Fabião acompanhou o general e resumiu as conversações.
Senghor levava uma proposta estudada. Tratava-se, no essencial, de interromper as hostilidades e de entregar o poder, na Guiné e em Cabo Verde, durante um período transitório de dez anos, a uma administração mista, constituída por elementos nomeados pelo PAIGC e pelo governo português. Presumia-se que, no final desse período, fosse acordada a independência.
Curiosamente, o projeto estava em conformidade com as ideias defendidas por Caetano anos atrás. Por outro lado, dificilmente teria sido formulado sem o consentimento tácito de Amílcar Cabral, um homem que o destino pusera à frente de um movimento armado mas a quem o feitio predispunha às negociações.
Era a solução política que Spínola perseguia. 
     Caetano recusou. Mudara de ideias. Em 1972, considerava que, no quadro global da guerra em três territórios, a derrota militar na Guiné era preferível à negociações. O governo central não estava realmente disposto a modificar a sua política colonial, isto apesar do pretenso apoio e incentivo que deu a Spínola nas suas diligências, de que estava, obviamente, a par. Logo que chegou à fase de concretização do Plano, Marcelo Caetano proibiu a Spínola a continuação dos contactos e negociações com o argumento de que na Guiné se aceitava um desastre militar mas nunca uma cedência política.
Face a esta posição de intransigência e de cegueira política do governo português, perdeu-se, ingloriamente, a última oportunidade de se poder negociar uma solução política para a guerra da Guiné.

… Ao Marechal Spínola não restava outra solução que não fosse a de continuar a guerra. Como tinha a plena consciência de que esta era uma solução antinacional, ia começar a conspirar. Só restava uma alternativa: o derrube do governo que impunha uma guerra desgastante e impossível de vencer…

Amílcar Cabral foi assassinado em Janeiro de 1973. Depois da sua morte, o PAIGC intensificou os ataques contra as forças portuguesas.
Numa carta enviada a Caetano em Março de 1973, Spínola afirmava que a continuação de ações exclusivamente militares levaria a um desastre semelhante ao que ocorrera em Goa.
As coisas estavam a correr mal às nossas tropas. As operações Nô Pincha, no norte do território e Amílcar Cabral, no sul desequilibraram a situação militar. Começaram a ser utilizados mísseis terra-ar SAM-7 Strela, de fabrico soviético. Em quinze dias, foram abatidos cinco aviões das FAP. Sem apoio aéreo, o moral de oficiais e soldados portugueses foi-se abaixo. O PAIGC tomou a praça-forte de Guilagé e apoderou-se de artilharia e de material de transmissões. Nesse mesmo dia, Spínola pediu a exoneração das funções que desempenhava e informou o ministro do Ultramar e o Chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas, General Costa Gomes, de que a derrota militar já não poderia ser evitada. A ofensiva do PAIGC só foi interrompida pela chuva, a meio do ano. As derrotas portuguesas sucediam-se umas às outras. Cabral triunfava, meio ano após a sua morte.

1 comentário:

  1. a falta de estratégia do governo na altura ditou a derrota
    militar o então general Spínola tinha razão e por esses erros
    todos Portugal é hoje um Pais apagado. sem futuro

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